domingo, 7 de novembro de 2010

EM DEFESA DE MONTEIRO LOBATO

Li todas as obras de Monteiro Lobato. Praticamente foi com suas obras que aprendi a gostar de ler. Lembro-me bem da pequena biblioteca da escola em que estudei, na cidade de Serrinha, na Bahia. Fazia ainda o curso primário, no começo da década de 1970. Todas as semanas eu me divertia lendo as fantasias criadas por esse que considero um dos maiores escritores brasileiros.

"Reinações de Narizinho", foi o primeiro deles, e depois não parei mais. Quando saí da escola, aprovado no exame de Admissão para cursar o Ginasial (é, existia isso naquela época), continuei não somente visitando-a, como a convite da diretora e minha ex-professora me tornei responsável por organizar e cuidar de seus livros. O pagamento para isso? Continuar pegando emprestado as obras de Monteiro Lobato.

Viajei pelo mundo maravilhoso de Pedrinho, Narizinho, Emília, D. Benta, Tia Nastácia e tantos outros personagens do nosso folclore e de outras histórias fantásticas. Foi através de Monteiro Lobato que conheci a famosa obra de Miguel de Cervantes, "D. Quixote de La Mancha". Lobato adaptou essa obra para o universo de seus personagens, com o título de "D. Quixote das Crianças".

Depois, no final da década de 1970, já adolescente, me deliciava relembrando desses personagens, assistindo de vez em quando o programa "Sítio do Picapau Amarelo", em sua primeira versão, quando a TV Globo dava conta de fazer programas infantis assistíveis. Mas antes, outros emissoras já tinham de alguma forma adptado uma ou outra obra de Lobato.

Na semana que passou, quando tomei conhecimento de uma "censura" imposta a uma de suas obras - "Caçadas de Pedrinho" - pelo Conselho Nacional de Educação, a pedido de um cidadão, fiquei escandalizado. Pensei numa palavra que pudesse sintetizar tal medida e achei uma que parece um palavrão: estapafúrdia.

Acusar de racismo uma obra de literatura, sem contextualizá-la é abominável. Imagine quantas obras teriam que ser reeditadas com informes sobre frases hoje tidas como "politicamente incorretas". Quantos clássicos da literatura sobreviveriam ao crivo da intolerância?

Creio que está passando dos limites determinados comportamentos que, em nome de se combater discriminações caem em outro extremo, e podem até mesmo afetar a compreensão de como historicamente se comportava a sociedade brasileira em décadas e séculos passados. O que as novas gerações precisam é conhecer a nossa história, e saber quais e como os valores culturais determinavam a maneira como se construía o comportamento das pessoas e suas relações com aquelas de origens pobres e negras.

As manifestações preconceituosas contra os nordestinos, que aconteceram recentemente, fruto da radicalização do discurso ultra-conservador que conduziu a candidatura de José Serra, tem história. Ela se origina na maneira como a sociedade brasileira foi construída escorada nesses valores. A literatura nos ajuda a entender isso. Negá-la é como apagar nossa própria História.

A seguir, acrescento um artigo do Deputado Federal Aldo Rebelo, que escreveu bela crítica a essa sandice:


Monteiro Lobato no tribunal literário

Aldo Rebelo:

O parecer do Conselho Nacional de Educação (CNE) de que o livro "Caçadas de Pedrinho" deve ser proibido nas escolas públicas, ou ao menos estigmatizado com o ferrão do racismo, instala no Brasil um tribunal literário.

A obra de Monteiro Lobato, publicada em 1933, virou ré por denúncia -é esta a palavra do processo legal-de um cidadão de Brasília, e a Câmara de Educação Básica do Conselho opinou por sua exclusão do Programa Nacional Biblioteca na Escola.

Na melhor das hipóteses, a editora deverá incluir uma "nota explicativa" nas passagens incriminadas de "preconceitos, estereótipos ou doutrinações". O Conselho recomenda que entrem no índex "todas as obras literárias que se encontrem em situação semelhante".

Se o disparate prosperar, nenhuma grande obra será lida por nossos estudantes, a não ser que aguilhoada pela restrição da "nota explicativa" -a começar da Bíblia, com suas numerosas passagens acerca da "submissão da mulher", e dos livros de José de Alencar, Machado de Assis e Graciliano Ramos; dos de Nelson Rodrigues, nem se fale. Em todos cintilam trechos politicamente incorretos.

Incapaz de perceber a camada imaginária que se interpõe entre autor e personagem, o Conselho vê em "Caçadas de Pedrinho" preconceito de cor na passagem em que Tia Nastácia, construída por Lobato como topo da bondade humana e da sabedoria popular, é supostamente discriminada pela desbocada boneca Emília, "torneirinha de asneiras", nas palavras do próprio autor: "É guerra, e guerra das boas".

Não vai escapar ninguém -nem Tia Nastácia, que tem carne negra". Escapou aos censores que, ao final do livro, exatamente no fecho de ouro, Tia Nastácia se adianta e impede Dona Benta de se alojar no carrinho puxado pelo rinoceronte: "Tenha paciência -dizia a boa criatura. Agora chegou minha vez. Negro também é gente, sinhá...".

Não seria difícil a um intérprete minimamente atento observar que a personagem projeta a igualdade do ser humano a partir da consciência de sua cor. A maior extravagância literária de Monteiro Lobato foi o Jeca Tatu, pincelado no livro "Urupês", de 1918, como infamante retrato do brasileiro. Mereceria uma "nota explicativa"?

Disso encarregou-se, já em 1919, o jurista Rui Barbosa, na plataforma eleitoral "A Questão Social e Política no Brasil", ao interpretar o Jeca de Lobato, "símbolo de preguiça e fatalismo", como a visão que a oligarquia tinha do povo, "a síntese da concepção que têm, da nossa nacionalidade, os homens que a exploram".

Ou seja, é assim que se faz uma "nota explicativa": iluminando o texto com estudo, reflexão, debate, confronto de ideias, não com censuras de rodapé.

O caráter pernicioso dessas iniciativas não se esgota no campo literário. Decorre do erro do multiculturalismo, que reivindica a intervenção do Estado para autonomizar culturas, como se fossem minorias oprimidas em pé de guerra com a sociedade nacional.

Não tem sequer a graça da originalidade, pois é imitação servil dos Estados Unidos, país por séculos institucionalmente racista que hoje procura maquiar sua bipolaridade étnica com ações ditas afirmativas.

A distorção vem de lá, onde a obra de Mark Twain, abolicionista e anti-imperialista, é vítima dessas revisões ditas politicamente corretas. País mestiço por excelência, o Brasil dispensa a patacoada a que recorrem os que renunciam às lutas transformadoras da sociedade para tomar atalhos retóricos.

Com conselheiros desse nível, não admira que a educação esteja em situação tão difícil. Ressalvado o heroísmo dos professores, a escola pública se degrada e corre o risco de se tornar uma fonte de obscurantismo sob a orientação desses "guardiões" da cultura.


Fonte: http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_noticia=140984&id_secao=11

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Até o papa apoiou Serra

Esta semana abro o espaço do Gramática do Mundo para um artigo do jornalista Mino Carta. Faço isso porque ele sintetizou com brilhantismo uma análise que eu gostaria de ter escrito.

Até o papa apoiou Serra

por Mino Carta, da Carta Capital (http://www.cartacapital.com.br/index.php/author/Mino%20Carta)

Dilma Rousseff, a eleita, teve de enfrentar a campanha mais feroz contra um candidato à Presidência na história do Brasil

Temos uma mulher na Presidência da República, primeira na história do Brasil. E que uma mulher chegue a tanto já é notícia extraordinária. Levo em conta a preocupação do Datafolha a respeito da presença feminina no tablado eleitoral: refiro-me à pergunta específica contida na sua pesquisa, sempre aguardada com ansiedade pelo Jornal Nacional e até pelo Estadão. A julgar pelo resultado do pleito, Dilma Rousseff representa entre nós a vitória contra o velho preconceito pelo qual mulher só tem serventia por certos dotes que a natureza generosamente lhe conferiu.

Para CartaCapital a eleição de Dilma Rousseff representa coisas mais.

A maioria dos eleitores moveu-se pelas razões que nos levaram a apoiar a candidata de Lula desde o começo oficial da campanha. Em primeiro lugar, a continuidade venceu porque a nação consagra os oito anos de bom governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Inevitável foi o confronto com o governo anterior de Fernando Henrique Cardoso, cujo trunfo inicial, a estabilidade, ele próprio, príncipe dos sociólogos, conseguiu pôr em risco.

Depois de Getúlio Vargas, embora manchada a memória pelo seu tempo de ditador, Lula foi o único presidente que agiu guiado por um projeto de país.

Na opinião de CartaCapital, ele poderia ter sido às vezes mais ousado em política social, mesmo assim mereceu índices de popularidade nunca dantes navegados e seu governo passou a ser fator determinante do êxito da candidata.

A comparação com FHC envolve também a personalidade de cada qual. Por exemplo: o professor de sociologia é muito menos comunicativo do que o ex-metalúrgico, sem falar em carisma. Não se trata apenas de um dom natural, e sim da postura física e da qualidade da fala, capaz de transmitir eficazmente ideias e emoções. Lembraremos inúmeros discursos de Lula, de FHC nenhum.

Outra diversidade chama em causa a mídia nativa. Fascinada, sempre esteve ao lado de FHC, inclusive para lhe esconder as mazelas.

Vigorosa intérprete do ódio de classe em exclusivo proveito do privilégio, atravessou oito anos a alvejar o presidente mais amado da história pátria. Quando, ao dar as boas-vindas aos 900 convidados da festa da premiação das empresas e dos empresários mais admirados no Brasil, ousei dizer que o mensalão, como pagamento mensal a parlamentares, não foi provado para desconforto da mídia, certo setor da plateia esboçou um começo de vaia. Calou-se quando o colega Paulo Henrique Amorim ergueu-se ao grito de “Viva Mino!” Os fiéis da tucanagem não primam pela bravura.

Pois Dilma Rousseff teve de enfrentar esta mídia atucanada, a reeditar o udenismo de antanho em sintonia fina com seus heróis. Deram até para evocar o passado da jovem Dilma, “guerrilheira” e “terrorista”. Como de hábito, apelaram para a má-fé para explorar a ignorância de um povo que, infelizmente, ainda não conhece a sua história, e que não a conhece por obra e graça sinistra de uma minoria a sonhar com um país de 20 milhões de habitantes e uma democracia sem demos.

Nos porões do regime dos gendarmes da chamada elite, Dilma Rousseff­ foi encarcerada e brutalmente torturada. Poderia ter sofrido o mesmo fim de Vlado Herzog, que os jornalistas não se esquecem de recordar todo ano.

Mas a hipocrisia da mídia não tem limites, com a contribuição da ferocidade que imperou na internet ao sabor da campanha de ódio nunca tão capilar e agressiva. E na moldura cabe à perfeição a questão do aborto, praticado à vontade pelas privilegiadas e, ao que se diz, pela própria esposa de José Serra, e negado às desvalidas.

Até o papa alemão a presidente recém-eleita teve de enfrentar. Ao se encontrar já nos momentos finais da campanha com um grupo de bispos nordestinos, Ratzinger convidou-os a orientar os cidadãos contra quem não respeita a vida, clara referência à questão que, lamentavelmente, invadiu as primeiras páginas, as capas, os noticiários da tevê. Parece até que Bento XVI não sabe que o Vaticano fica na Itália, onde o aborto foi descriminalizado há 40 anos.