segunda-feira, 26 de março de 2012

AS ORIGENS DA INTOLERÂNCIA E O FASCISMO MODERNO

A sociedade brasileira, historicamente, sempre foi "racista". Isso é consequência da formação cultural de um povo que por longo tempo aceitava como dentro da normalidade o tratamento diferenciado a pessoas de cor negra e de classes sociais mais pobres. Por muito tempo também, essas imposições que estavam impregnadas nas relações sociais, eram tão marcantes, e impositivas, que aqueles que eram vítimas do preconceito pouco reagiam, como se aquela condição viesse determinada por alguma designação divina. Quem nasceu antes da década de 80 sempre se deparou com frases o tipo: “Ah, meu filho, é assim mesmo, Deus é quem quer assim”.
E assim, imposto pelas relações de classes a partir de um regime escravocrata, sob a cumplicidade da igreja e a conformação dos fiéis, culturalmente fomos treinados a aceitar tais diferenças como normais. Os que ousassem se bater contra a estratificação social, que prevaleceu em nosso país desde os seus primórdios, eram de diversas formas, segundo sua época, considerados subversivos. A reação era violenta, porque a classe dominante temia as revoltas populares.
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As mudanças, no entanto, vieram a partir do século XX. Seja pela iniciativa de grupos de intelectuais, que passavam a questionar os valores dominantes, pelas várias rebeliões populares que aconteceram e/ou pelo fortalecimento do socialismo, no Brasil e no mundo. Mas a consolidação de direitos, e de medidas legais contra o preconceito é bem recente, data da elaboração da Constituição de 1985, juntamente com a criação de instrumentos de punição, como o Ministério Público, instituições que surgiram e se fortaleceram, sem vínculos diretos com o Estado, mas também com a criação de Ministérios e Secretarias voltadas para a defesa dos direitos humanos.
Do ponto de vista científico muitos avanços em pesquisas contribuíram para derrubar vários mitos, criados com o intuito de manter as pessoas acomodadas. O principal deles diz respeito à teoria de que o mundo é constituído por raças, sendo algumas delas consideradas superiores. Mais uma vez a religião foi utilizada para reafirmar essas crenças, possibilitando que inúmeras tragédias e genocídios fossem cometidos. As classes e “raças” inferiores não tinham o direito de se insurgirem, e se assim o fizessem, poderiam ser eliminadas sem que isso pudesse se constituir em crime. Mas a ciência desmontou essa farsa, tornada uma arma política para dominar povos mais fracos. Raças não existem. Os povos se diferenciam por seus ambientes, pela necessidade de adaptação a situações diversas, o que os tornam diferentes. Mas todos os seres humanos carregam em sua formação biológica as mesmas características impressas no DNA, com pequenas diferenças que nos distingue uns dos outros.
Mas, por vivermos em ambientes diferentes e termos que nos adaptarmos a eles, criamos resistências que com o tempo definem o nosso perfil, as nossas características, a nossa cor. Também por isso cultivamos hábitos diferentes, seja na forma de nos relacionarmos ou na maneira como nos alimentamos. O próprio DNA vai definir nossas proximidades parentais, tornando aqueles de cada grupo mais ou menos parecidos, o que cientificamente passou a ser conhecido como diferenças, ou semelhanças étnicas. São etnias, e não raças, que se espalharam pelo mundo. Afinal, somos todos componentes de uma única raça. Somos humanos.
As diferenças, no entanto, foram sempre objetos de manipulação pelos que buscavam exercer o controle sobre regiões e territórios ricos e estrategicamente importantes. Isso potencializado pelas religiões, todas elas, como um dos instrumentos mais eficazes para justificar o direito à servidão ou à escravidão. Mas isso não se deu somente em relação à dominação que o branco vai exercer, consequência de todo o processo de colonização europeia. Antes disso, mulheres, judeus e homossexuais, padeceram por toda a idade média, rejeitados pelos livros sagrados que traziam em seus parágrafos e parábolas toda uma carga negativa contra essas camadas sociais. Acrescente-se a isso, com a expansão colonial e a descoberta de riquezas na África e na América, os negros e os índios.
Mas a igreja permanece entre as instituições mais importantes para reforçar uma série de estigmas. E isso se reforça, na medida em que a concentração das pessoas nas cidades aumenta, o número de templos se reproduz aceleradamente e um verdadeiro poder intimidatório, armado, torna as diversas igrejas, principalmente da religião católica e muçulmana, verdadeiros instrumentos de dominação mediante o controle das consciências, mas também com um aparato militar poderoso a deflagrar guerras santas contra os que se opusessem a aceitar a influência e o poder de uma delas.
O maniqueísmo, trazido dos tempos antigos, donde vigorou por volta do século III, determinava a existência permanente de um antagonismo, expresso em dois princípios irredutíveis, Deus e o bem absoluto, e o Diabo, ou o mal absoluto. Embora perseguidos por muitos séculos, os adeptos do maniqueísmo sincretizaram esses valores de praticamente todas as grandes religiões. Judaísmo, islamismo, cristianismo, e até o zoroastrismo, fundamentaram seus dogmas escorados nessa dicotomia. Obviamente, o mal se manifesta não somente, mas principalmente entre aqueles que não aceitam aquela divindade religiosa. Isso serviu, ao longo dos séculos, para justificar comportamentos intolerantes e guerras que passavam a serem justificadas como santas, com objetivo de converter impuros e hereges. Daí se origina a velha expressão: “ficar entre a cruz e a espada”.
Por toda a idade média acusações contra os que não seguiam os credos da religião dominante serviam como pretexto para condenações de bruxarias, heresias, e outros argumentos que tinham o intuito de forçar a aceitação daqueles valores religiosos. Sempre em plena harmonia com os interesses da classe dominante naquela e em cada época. Guerras e execuções monstruosas partiam de comportamentos intolerantes da não aceitação das diferenças, e, principalmente, da livre escolha de cada um sobre a maneira de ver o mundo e de se comportar perante ele. O que era permitido estava nos limites do que era tolerado pelas crenças religiosas, do apego a valores culturais escritos em milenares livros sagrados, em condições históricas e sociais completamente distintas. 
O dogma, a crença inamovível, que constitui a espinha dorsal dessas religiões, sempre carregou preconceitos de outras épocas, aceitas como princípios e valores que não podem ser contrariados. As mulheres sempre foram as principais vítimas dessas intolerâncias, submetidas aos papéis mais pecaminosos e à condição de submissão diante do poder autoritário do homem. Mas elas mudam com o passar do tempo, na medida em que os grupos sociais submetidos ao preconceito conquistam vitórias e obtém, mediante lutas de décadas, leis que lhes favoreçam. Mas a partir daí preconceitos e atos de intolerância ora escondem-se em comportamentos hipócritas, ora assumem-se de formas violentas e fatais.
Guerra dos 30 anos -
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Com o capitalismo essas intolerâncias assumem novos contornos. A burguesia, é fato, necessitava romper com os valores culturais que vigorou por toda a idade média, e mesmo antes. Para isso era preciso não somente agir com dureza contra a nobreza decadente, mas também contra a instituição religiosa que determinava regras que a impediam de consolidar o seu poder dominante, naquele momento em ascensão. Por isso a divisão que surgiu no cristianismo foi um fator importante para a consolidação de novos preceitos dogmáticos. O Estado capitalista assumiu a condução não somente das questões econômicas, mas também dos novos valores baseados, pelo menos em teoria, na liberdade, igualdade e fraternidade. Teoricamente também, os credos religiosos deveriam se submeter a esse novo poder estatal e a uma carta constitucional que deveria ser laica, a fim de garantir os preceitos democráticos, que deveria atender a todos indistintamente.
Mas na prática as coisas não aconteceram assim. Por trás das leis permaneciam resquícios de hábitos que continuavam impregnados naqueles valores milenares, e se ampliavam com uma nova lógica que determinava as diferenças a partir da capacidade do indivíduo de acumular riqueza. Assim, além das mulheres, homossexuais, negros, índios, também os pobres passavam a se constituir em alvos de intolerância, por se deslocarem para aqueles lugares que oferecessem as melhores alternativas de sobrevivência. Muitas vezes estranhos àqueles ambientes essas pessoas tornavam-se malquistas por representarem ameaças aos indivíduos nascidos no lugar. Os estilos de vida diferentes, a cor da pele, e até mesmo as diferenças religiosas, e já não mais somente contra os judeus, passaram a definir uma nova lógica maniqueísta, a ponto de culminar com uma guerra de proporção mundial, com crimes coletivos aterradores.
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O mundo mudou, a luta em defesa da democracia prevaleceu e muitas conquistas foram obtidas, principalmente como decorrência da derrota do nazismo e do fascismo, que em certo momento da história simbolizaram esse ambiente de acirramento das intolerâncias. Mas, sempre que uma determinada sociedade entrava em crise, sintomas crescentes de comportamentos intolerantes tornavam-se mais frequentes. E isso atingiu o auge, nesses novos tempos inaugurados com a chamada globalização e o crescente individualismo. Como em outras épocas a religião carrega isso impregnado em novos valores, agora denominado de “teoria da prosperidade”. Nas sociedades em que não é o cristianismo que impera a reação cresce na contraposição aos “valores ocidentais”, e opõe cristãos x muçulmanos, cristãos x católicos, muçulmanos x judeus. Em todas elas, carregando dogmas seculares, se mantém e se acirram com as crises, a reação contra ateus, homossexuais e a preocupação em não dar às mulheres a plena condição de decidir sobre seu corpo. Elas sempre foram vítimas de preconceitos em todas as religiões.
E isso explica toda a violência que se mantém até os dias de hoje. Ora, de onde são retirados todos os ódios que se dirigem aos mesmos alvos de tantos séculos? As piadas, os constrangimentos, as brutalidades, se disseminam com a mesma estupidez de sempre, mas vêm carregadas de novos estigmas. Novos na forma, antigos no conteúdo, pois seguem a mesma lógica. Mulheres continuam sendo agredidas, embora leis cada vez mais duras sejam criadas; homossexuais são atacados, espancados e assassinados, e tanto quanto as mulheres são impedidos de definir o que fazer de seus corpos, e de suas escolhas sexuais; pobres, são vistos como ameaças a jovens que se julgam no direito de determinar quem deve se dar bem nos vários lugares, cidades, estados ou nações; e os ateus, cujo crime é buscar ver  a vida na compreensão de que a explicação para tudo o que nos cerca encontra-se na própria biodiversidade em plena transformação desde milhões de anos e de que a crença em um deus é uma das mais perfeitas criações humanas.
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Mas, então, o que explica o fato de mesmo após de tantas conquistas e leis tais preconceitos e atos intolerantes permanecerem? A religião. Nesta nova etapa da vida humana, século XXI, potencializada pela mais perversa delas, a do capital. Essa, nos dias de hoje definem o fascismo moderno, acentuado nesses anos de globalização neoliberal, cujos alicerces se sustentam no individualismo, no egoísmo e na ganância. O mesmo capital que se torna a causa que motiva guerras religiosas, seja na disputa por territórios sagrados, de enorme riqueza mineral, ou pela ferrenha disputa pelos dízimos de milhões de ingênuos seguidores de pretensos apóstolos divinos. A religião do capital impregnou a sociedade e fez aumentar a intolerância religiosa, porque quanto mais a disputa pelo dinheiro seja o fator primordial, mas se tem a necessidade de defendê-lo e ampliar constantemente a possibilidade de maiores ganhos.
Em contrapartida, mas também marchando lado a lado com os interesses religiosos seculares, a disputa pelo poder, a política, e a crescente radicalidade de discursos xenófobos (de aversão ao estrangeiro), moralistas e preconceituosos. Na disputa pelo poder, o grande Poder, a mídia, entra com sua parcela considerável de culpa, ao posicionar-se ao lado de partidos e de políticos que assumem comportamentos fundados na intolerância. A campanha que se fez para desmoralizar um presidente de origem pobre, nordestina e trabalhador, deu ênfase a discursos fascistas, notadamente de setores das classes dominantes, e a razão clara disso era explícita, conter a ascensão de personagens que não estivessem diretamente vinculados às elites secularmente dominantes.
Isso se expressou não somente nos períodos eleitorais, mas na aversão às políticas de inclusão social que buscavam minimamente resgatar dívidas causadas por esses valores culturais anteriormente criticados. As políticas de cotas tornaram-se alvos de articulistas reacionários, juntamente com um dos maiores programas de inclusão social do mundo, o bolsa família. Isso significou para essas camadas pretensamente inferiores uma ameaça, o "pérfido comunismo" se aproximava do Brasil e ameaçava os possuidores da riqueza. E se repetiu quando da possibilidade de ascensão de uma mulher para presidir o nosso país. A ex-guerrilheira, em tempos de falta de espaços políticos livres, tornava-se a nova ameaça aos velhos valores, e abria-se uma nova guerra santa diante da eminência de o aborto tornar-se pauta política. Os velhos sicofantas religiosos arrepiaram-se e afiaram seus discursos, tentando impor a todos suas velhas crenças. Mantém-se os vícios autoritários medievais, pelos quais ninguém poderia decidir sobre seus corpos e suas consciências.
Com isso a radicalidade do discurso preconceituoso e intolerante construiu nos templos, nas redações, nas escolas, nas ruas estressantes e pecaminosas, os novos fascistas, remanescentes de práticas seculares, tão estúpidos e criminosos quanto todas as demais épocas da história. Mas, muito embora a época moderna traduz-se pelos avanços de leis democráticas, a dependência da decisão de uma justiça refém também de valores antigos, e presa aos interesses da elite dominante, reforça a velha sensação de impunidade que mantém as cadeias abertas apenas para os pobres. E ainda no âmbito da justiça, esses fascistas modernos se municiam não somente de velhas crenças, mas também se cercam de bancas de advocacias especializadas em livrar garotos malcriados, que agem criminosamente fiando-se na impunidade do que o dinheiro proporciona, nas brechas da lei e no censo carcerário, onde 70% não completou o primeiro grau e cerca de 10% é analfabeto. Ou seja, se a cadeia é feita para o pobre, o que impede neo-fascistas e neo-nazistas oriundos de famílias ricas, de agirem contra o que eles consideram escória?
O fascismo moderno, enfim, não aparece espontaneamente na cabeça de jovens. É fruto de teorias preconceituosas e de instrumentos sociais que criam e reforçam valores que se baseiam na intolerância, na não aceitação das diferenças, e na liberdade de as pessoas definirem suas opções sexuais. Como na atitude bizonha e estúpida de um deputado pastor que pretende criar medidas que desfaçam a opção sexual de gays.
Tudo isso faz parte de dogmas que permanecem sendo instigados de forma instrumental em templos, tabernáculos, igrejas e mesquitas de todo o mundo, muito embora não se constitua em regra geral nem tenha relação com a fé individual, de cada pessoa, com sua legítima crença e liberdade de acreditar no que lhe convier.
São teorias também que fundamentam programas partidários que representam setores econômicos dominantes e a classe média alta, mas que pelo reforço ideológico religioso dissemina-se indistintamente por todas as demais classes sociais, apontam para perigosos caminhos, e se refletem de forma mais agressivas em alguns países, mas tendem a se expandir na medida do crescimento da crise econômica.


SUGESTÃO DE FILMES:

ALEXANDRIA
Sob o domínio Romano, a cidade de Alexandria é palco de uma das mais violentas rebeliões religiosas de toda história antiga. Judeus e Cristãos disputam a soberaniapolítica, econômica e religiosa da cidade. Entre o conflito, a bela e brilhante astrônoma Hypatia (Rachel Weisz) lidera um grupo de discipulos que luta para preservar a biblioteca de Alexandria. Dois deles disputam o seu amor: o prefeito Orestes (Oscar Isaac) e o jovem escravo Davus (Max Minghella). Entretanto, Hypatia terá que arriscar s sua vida em uma batalha histórica que mudará o destino da humanidade.

Informações Técnicas:
Título no Brasil:  Alexandria
Título Original:  Agora
País de Origem:  Espanha
Gênero:  Drama
Tempo de Duração: 125 minutos
Ano de Lançamento:  2009
Direção:  Alejandro Amenábar
  
Elenco
Rachel Weisz ... Hypatia
Max Minghella ... Davus
Oscar Isaac ... Orestes

O NOME DA ROSA
Em 1327 William de Baskerville (Sean Connery), um monge franciscano, e Adso von Melk (Christian Slater), um noviço que o acompanha, chegam a um remoto mosteiro no norte da Itália. William de Baskerville pretende participar de um conclave para decidir se a Igreja deve doar parte de suas riquezas, mas a atenção é desviada por vários assassinatos que acontecem no mosteiro. William de Baskerville começa a investigar o caso, que se mostra bastante intrincando, além dos mais religiosos acreditarem que é obra do Demônio. William de Baskerville não partilha desta opinião, mas antes que ele conclua as investigações Bernardo Gui (F. Murray Abraham), o Grão-Inquisidor, chega no local e está pronto para torturar qualquer suspeito de heresia que tenha cometido assassinatos em nome do Diabo. Considerando que ele não gosta de Baskerville, ele é inclinado a colocá-lo no topo da lista dos que são diabolicamente influenciados. Esta batalha, junto com uma guerra ideológica entre franciscanos e dominicanos, é travada enquanto o motivo dos assassinatos é lentamente solucionado.

Informações Técnicas:
TÍTULO DO FILME: O NOME DA ROSA (The Name of the Rose, ALE/FRA/ITA 1986)
DIREÇÃO: Jean Jacques Annaud
ELENCO: Sean Conery, F. Murray Abraham, Cristian Slater. 130 min, Globo Vídeo

PHILADÉLFIA
Saudado como um marco do cinema, de profunda emoção e atuações excepcionais, Filadélfia é estrelado por Tom Hanks e Denzel Washington como dois advogados competentes que juntam forças para processar uma prestigiada firma de advocacia por discriminação da doença. E, alimentados por sua improvável mas crescente amizade, eles superam com coragem o preconceito e a corrupção de seus poderosos adversários.
Informações Técnicas
Título Original:  Philadelphia
País de Origem:  EUA
Gênero:  Drama
Tempo de Duração: 125 minutos
Ano de Lançamento:  1993
Direção:  Jonathan Demme
  
Elenco
Tom Hanks ... Andrew Beckett
Denzel Washington ... Joe Miller

ARMAS, GERMES E AÇO (DOCUMENTÁRIO)

Em seu premiado livro "Armas, Germes e Aço", o escritor Jared Diamond tentava responder: "Por que algumas sociedades florescem mais do que as outras?".
Este documentário é uma extensão de suas teorias, gravado em quatro continentes e misturando cenas atuais, entrevistas com historiadores, arqueólogos e cientistas, reconstrução histórica e animação computadorizada, traçando a jornada humana desde o nascimento da agricultura até a realidade da vida no século 21. 

Direção: Tim Lambert
Apresentação: Jared Diamonds

sábado, 17 de março de 2012

A GEOGRAFIA SERVE NÃO SOMENTE PARA FAZER A GUERRA

ensinodegeografiauesb.blogspot.com
Para o meu orgulho e enorme satisfação recebo, mais uma vez, homenagem de uma turma de formandos da Geografia. Há dezesseis anos leciono para jovens que escolheram para sua profissão tornar-se Geógrafos(as). Para mim, historiador que se apaixonou pelo conhecimento geográfico através das obras instigantes de um conterrâneo, Milton Santos, sempre foi um desafio utilizar de minha formação para contribuir com a ampliação do horizonte geográfico, estabelecendo uma necessária relação entre o tempo e o espaço.
Como o rito da formatura não inclui o uso da palavra pelo homenageado, resolvi transmitir através do Blog Gramática do Mundo, meu canal de expressão nos últimos anos, o que eu falaria caso me fosse permitido. Uma retribuição a essa elogiosa deferência que me é feita por ex-alunos.
Geografia, em sua significação literal compreende o Estudo da Terra, advém das palavras gregas “geo”, significando terra e “graphia”, estudo ou leitura. Mas a amplitude dessa palavra combina com a dimensão que tomou nossa vida na terra. Mais do que o simples estudo de um complexo planeta, ou do que o cerca e da enorme biodiversidade que reside nele, a Geografia se depara com a imensa responsabilidade de compreender a complexidade em que ele se transformou pela ação humana.
Formandos de Geografia 2012
Não que ele fosse, ou seja, estático, muito pelo contrário. Independente do papel que o homem tem desempenhado, ao longo de um pequeno tempo da sua existência, a Terra, por si só é pleno movimento. A vida sempre pulsou e evoluiu dialeticamente, ao longo de milhões de anos. Certamente, nossa espécie não pode ser responsabilizada pelas constantes idas e vindas, de aquecimentos e esfriamentos, choques térmicos e tectônicos, desertificação e inundações, terremotos e tsunamis, aparecimento e desaparecimento - vida e morte - de milhares de espécies que vivem em luta contínua pela sobrevivência. Uns sobrevivem, preservam seus genes e os aperfeiçoam. Outros, pelas dificuldades de adaptações sucumbem. Alguns porque suas próprias vidas decorrem da necessidade de sobrevivência de outras. Muito embora nos últimos cinquenta anos, nós, seres humanos, tenhamos acelerado muitas dessas mudanças naturais.
Nesse maravilhoso mundo, vasto mundo, como dizia o poeta, nos destacamos pela capacidade de produzir socialmente, pela habilidade com as mãos e o desenvolvimento do cérebro. Homens e mulheres, ao longo da história de vida desse imenso planeta Terra passaram a intervir diferentemente dos demais animais, e pelo uso racional construiram maravilhas que tornaram possíveis a vida humana prolongar-se cada vez mais. E transferiu para as cidades, imensas selvas de concretos e de estressantes veículos, toda a nossa lógica e estilo de viver.
Construímos pela razão e pela lógica uma forma de vida irracional e ilógica, quando olhamos para o depósito que nos fornecem as matérias primas utilizadas para nos tornar, aparentemente, senhores e condutores dos destinos do mundo. Transformamos-nos em escravos de uma cultura do desperdício, da destruição, dos objetos tornados sofisticados por nós próprios, da mercadoria.
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Extraímos e destruímos o ambiente em que vivemos, a natureza, para construir um estilo de vida cada vez mais dominado pela técnica, pela tecnologia, pela virtualidade. O poder do dinheiro, instrumento a atiçar a cobiça e tornado indispensável no cotidiano das cidades, passou a conduzir nossos destinos, a determinar quem pode ou não se considerar cidadão, e eleito para desfrutar desse banquete fantástico. Poucos usufruem, se considerarmos a imensa população de 7 bilhões de pessoas que atualmente vivem em nosso planeta. Em sua imensa maioria, travam uma batalha desigual pela sobrevivência, e o objetivo primeiro nessa guerra é obter dinheiro.
E assim somos motivados a nos especializar, a especialização é tudo, para podermos nos inserir em meio aquela camada que tem acesso ao que a nossa capacidade e inteligência possibilitou construir. Alguns conseguem pelas oportunidades chegar a cursos cujos profissionais são mais “disputados” pelo Mercado, esse ente invisível, abstrato, onipotente e onipresente, um verdadeiro deus, segundo a lógica que conduz o sistema no qual estamos forçados a viver.
Pelo dinheiro, a usura e a ganância se tornaram elementos motivadores que definiram a cultura da nossa sociedade. Para possuí-lo, e não bastava somente o suficiente para sobrevivermos, todos os golpes, astúcias e disputas ferozes, no âmbito de uma empresa ou entre Estados-Nações, foram tentados, testados e aplicados. Disso resultou um mundo em agonia, em meio a uma complexidade que é ideologicamente partilhada, pelos que defendem esse estilo de vida, e por aqueles que já percebem termos chegado ao limite dessas contradições.
Por séculos ampliaram-se os conflitos e guerras de todos os tipos, conduzidas com o intuito de garantir o poder crescente para dominar os mercados e difundir mercadorias pelo mundo, hoje dominado por grandes corporações, imensos conglomerados financeiros, industriais e comerciais, de tentáculos enormes, mas que pouco conhecemos, por se tornarem sociedades anônimas e imensos paquidermes difíceis de serem investigados. São eles, e os senhores que os controlam, que dominam o mundo.
Para isso, a Geografia constituiu-se em um instrumento importante. Sem ela seria impossível o conhecimento em larga escala e a localização das riquezas que definiriam a capacidade de poder das Nações. Da mesma forma, se era preciso dominar pela força territórios donde se pudessem extrair matérias-primas necessárias para construir impérios, também se fazia imprescindível conhecer os espaços a serem conquistados, os territórios e suas riquezas a serem possuídos, mas também as características de cada lugar. Principalmente, para a utilização de táticas de dominação e para a construção de estratégias que permitissem o controle desses territórios pela guerra. Assim como era também necessário saber que tipo de população existe ali, suas condições de vida, cultura e hábitos religiosos e familiares. Pela Geografia, tornou-se possível a um Estado poderoso, exercer o domínio, o controle e forçar outras nações à submissão e a aceitação do poder imperial. A Geografia tornou-se um instrumento para a guerra.

Mas a complexa transformação que o mundo foi passando, de forma acelerada para atender à ganância dos que o dominam, trouxe em si contradições que constroem situações, aleatórias ou não, que possibilitam a uma mesma ciência tornar-se instrumento de dominação, mas também de libertação.
A Geografia não serve só para fazer a guerra.
A possibilidade de conhecimento do Geógrafo, mesmo numa época em que a multidisciplinaridade tornou-se uma obrigação, é infinitamente superior a de diversas outras áreas. O Geógrafo, se não se especializar precocemente, um equívoco que se comete nos dias atuais, tem a chance de acumular um conhecimento diverso do mundo, como nenhum outro profissional. A Geografia é a ciência do mundo, embora seja essa uma polêmica interminável, quanto ao seu caráter científico. Mas não somente do mundo, e aqui eu me refiro à terra, enquanto seus aspectos físicos, mas de um mundo tornado humano por essa ação espetacular da espécie mais vitoriosa da natureza. Embora não se saiba até quando.
Se é correto afirmar, como dizia Ratzel, que o ambiente define as condições de vida do indivíduo, também se deve considerar que ele adquire, pela sua relação com o meio, a possibilidade de transformá-lo, como dizia La Blache. E a História confirma essas duas concepções, e nos mostram ao longo do tempo de existência, adaptação e transformação do ser humano, como o nosso habitat foi sendo gradativamente mudado, sempre numa espiral superior, suplantando adversidades e adquirindo novas capacidades de dominação das demais espécies da natureza. Mas, paradoxalmente, destruindo-a, como forma de colocar em prática suas ambições, desde as mais idílicas às mais perversas.
Para ser herdeiro daqueles geógrafos que se preocuparam em entender o papel definidor da geografia, e a importância que a profissão possui em um mundo desigual e perverso socialmente, somente com uma capacidade crítica, só possível de ser obtida com o conhecimento da política, e dos artifícios utilizados para se conquistar o poder, o grande Poder. Refutar a política é reforçar um erro que transformou a Geografia num mero instrumento decoratório de aspectos físicos, pouco relevantes se não houver a preocupação em saber o significado que eles possuem em um mundo complexo cujo motor principal está regulado para identificar riquezas e torná-las mercadorias. E também porque esse conhecimento é adquirido e serve ao próprio ser humano.
Mas o conhecimento da política pressupõe também identificar as contradições que cercam as cidades, ambientes diversos repletos de significados, mas ao mesmo tempo de profundas injustiças e de espaços construídos de forma segregadora, discriminatória, e que se repetem ao longo das administrações públicas, sem planejamentos ou feitos de forma a atender somente a espaços privilegiados dos que possuem riquezas. Todos aqueles que se formam em Geografia, por todo o tempo de suas vidas, convivem cotidianamente com essa realidade. Mas, infelizmente, parece que elas tornam-se distantes quando do exercício profissional que se dispõe a atender aos interesses que o mercado exige.
Planejar virou sinônimo de construir ambiente agradáveis aos possuidores do dinheiro. Os pobres convivem em estruturas frágeis, insalubres, sem saneamento, quando muito com construções de praças que terminam se constituindo num único espaço de prazer em suas vidas. Apartados e apertados em habitações distantes dos centros vivos das metrópoles, em bairros que se assemelham a pequenas e pobres cidades interioranas. Sobram-lhes a alienação dos templos e da televisão.
O geógrafo deve saber usar seu conhecimento para contribuir com as transformações sociais. Deve tornar a Geografia um instrumento que sirva para corrigir distorções em um mundo construído com valores individualistas, gananciosos e egoístas. Ela pode tornar visível uma população que não usufrui das enormes conquistas que a espécie humana obteve, não somente no Brasil, mas no mundo, em regiões desprovidas de condições dignas de vida. A Geografia, que serve para fazer a guerra, deve também servir para combater as desigualdades sociais. Tornar visível o que o sistema procura esconder.
Aziz Ab'Sáber  (1924-2012)
Essa é a essência da mensagem que passo aos formandos em Geografia, inspirado em Yves Lacoste, Milton Santos, David Harvey, e, em uma homenagem especial, a esse que considero um dos maiores geógrafos brasileiros, falecido no dia 16 deste mês, Aziz Ab’Sáber.
Sejam bons profissionais, mestres ou bacharéis, mas imbuídos de um espírito de justiça que lhes possibilitem resistir às idolatrias de uma sociedade egoísta, em que se finge estar bem em meio a situações caóticas, preconceituosas e de uma violência gerada em seu próprio seio, pela cultura individualista da sobrevivência dos mais capazes, num perverso sistema meritocrático mas com oportunidades para poucos.
Mas não sejam amargos por isso, encarem a vida com a serenidade dos sábios, e não esqueçam jamais que o saber nós conquistamos com os mestres, mas a sabedoria advém da experiência de vida e da humildade.
Carpe Diem!

sexta-feira, 16 de março de 2012

DAVID HARVEY – INVIÁVEIS SOLUÇÕES PARA AS CRISES

Geógrafo britânico David Harvey alerta para incapacidade do capital em resolver seus problemas(*)
Maria Luisa Mendonça e Fábio T. Pitta de São Paulo (SP)

O geógrafo britânico David Harvey é um dos principais intelectuais marxistas hoje e está entre os vinte cientistas sociais mais citados em todo o mundo. Atualmente é professor na City University of New York e esteve no Brasil recentemente para o lançamento de seu livro O Enigma do Capital e as Crises do Capitalismo, publicado pela Editora Boitempo. A análise de Harvey sobre a crise no modo de produção capitalista tem sido sistemática nas últimas décadas, desde o livro clássico The Limits to Capital (Os Limites do Capital) publicado originalmente em 1982. O autor resgata o pensamento de Marx de forma complexa e ao mesmo tempo didática, para mostrar criticamente as contradições inerentes ao capitalismo, com a intenção de apontar possibilidades de superação deste modo de produção.     
Brasil de Fato – O senhor tem analisado o processo de crise há bastante tempo, especialmente desde seu livro Os Limites do Capital. Como caracteriza estes limites no contexto da atual crise? Seria possível dizer que existe um processo simultâneo de crise e acumulação de capital?
David Harvey – Inicialmente é preciso entender que o capital nunca resolve seus problemas, apenas os transfere para outro lugar. Há hoje um aumento na velocidade com que essa transferência é feita, pois o movimento do capital é determinado de acordo com o jogo de poder político, que protege uma pequena elite financeira. Nos Estados Unidos, a grande maioria da população continuará a sofrer os efeitos da crise, que parece ter chegado a um patamar político. Ou seja, eu vejo que a crise, tanto nos Estados Unidos quanto na Europa, é mais política do que econômica. Por isso a crise se estende e aumenta, de acordo com os interesses de uma pequena classe de capitalistas. Vemos uma crescente concentração de riqueza no Brasil, na Índia, na China e, é claro, nos Estados Unidos.        
Como o senhor avalia as saídas tradicionais que têm sido utilizadas para lidar com a crise, sejam neoliberais ou keynesianas? Quais os limites destas receitas? É possível diferenciar estes dois campos ou o que vemos é transferência de mais-valia social para o setor privado através do aparelho estatal?    
A expansão da economia nos Estados Unidos nas últimas décadas se deve em grande parte ao crescimento do mercado imobiliário – o que veio a causar a bolha financeira neste setor. Isso mostra que não é possível sair da crise através das alternativas tradicionais. Ao mesmo tempo, vemos que o mesmo processo de acumulação está acontecendo na China, onde se desenvolvem grandes projetos imobiliários e de infraestrutura. De certa forma, a China está implantando um projeto semelhante ao que ocorreu nos Estados Unidos na década de 1950, com a expansão dos subúrbios urbanos e a construção de rodovias, estimulada pela indústria automobilística. Podemos identificar este tipo de saída keynesiana ocorrendo no capitalismo global onde há crescimento, inclusive crescimento acelerado. Na América Latina, vimos revoltas contra o velho estilo do neoliberalismo e hoje há uma tendência keynesiana na economia. Já em países onde a receita neoliberal tem sido aplicada, como Europa e Estados Unidos, a crise se agrava. Mas é claro que isso não significa que o capitalismo global será salvo se todos se tornarem keynesianos. Os limites do sistema keynesiano já estão aparecendo na China, onde há uma superprodução de infraestrutura, uma bolha de ativos econômicos e aumento da inflação. Creio que podemos observar o mesmo processo na Argentina e no Brasil, o que revela os limites tradicionais do modelo keynesiano.     
No livro O Enigma do Capital o senhor caracteriza a crise atual de forma distinta das crises cíclicas, como na concepção de ciclos de Kondratieff, de queda tendencial da taxa de lucro ou da idéia de que as crises são consequência da queda do consumo ou do subconsumo. É possível dizer que a própria narrativa do livro mostra este processo?
O pensamento marxista tradicional imagina que exista uma única contradição através da qual as crises se desenvolvem no capitalismo. Porém, se observamos particularmente o segundo volume de O Capital, vemos que o que existe é um processo com vários momentos e, em cada um destes momentos, há a possibilidade de um bloqueio, o que gera a possibilidade de crise. Por exemplo, pode haver um bloqueio por falta de financiamento, como nos anos de 1970 quando os economistas falavam em “depressão financeira”. Isso levou ao processo de desregulamentação financeira, também caracterizado como “liberação de capital”. Mas ninguém fala sobre isso hoje. Naquele período havia uma classe trabalhadora mais organizada e o poder salarial era bem mais forte. Hoje isso não ocorre e, portanto, é difícil justificar a crise jogando a culpa nos sindicatos, como aconteceu anteriormente. No livro eu procuro mostrar que não é possível entender a crise a partir de um único lugar, mas perceber que há uma série de bloqueios, inclusive bloqueios em relação ao suprimento de energia ou recursos naturais. Eu procuro juntar estes elementos e pergunto: onde este processo está localizado hoje e para onde deverá ou poderá mover-se? Como o capital poderá superar um determinado bloqueio? Ou seja, eu não concentro a análise da crise em uma única explicação, como na diminuição do consumo ou na queda da taxa de lucro. Minha análise parte de uma combinação de fatores, que pode incluir todos estes elementos e por isso é preciso estudar concretamente. A teoria de Marx sobre a crise fala sobre possibilidades de crises. Por isso devemos procurar entender como essas possibilidades se transformam em realidade. Através de quais processos sociais?      


Em nenhum momento do livro identificamos o objetivo de procurar resolver a crise. É isso mesmo? 
Claro, o capital não pode resolver sua crise. 
Como o senhor vê a luta de classes hoje e os movimentos de protesto que falam em transformação através da idéia de que somos “os 99%”? 
Há dois tipos de possibilidades sendo debatidas. Uma seria manter o capitalismo através de mecanismos de retenção e regulação, o que poderia causar flutuações, mas não grandes fraturas. Seria uma forma de reorquestrar o capitalismo para que não causasse tantos danos como hoje, para promover mais igualdade, alguma distribuição de riqueza e sustentabilidade ambiental, como muitos na esquerda defendem. Outras pessoas dizem que não há saída no modo de produção capitalista e que é necessário buscar outras alternativas, com mudanças estruturais políticas e econômicas. É claro que as crises podem ocorrer em qualquer sistema, já que não é possível imaginar uma sociedade onde tudo funcionaria perfeitamente. Mas em um sistema não-capitalista as crises seriam de outro tipo. Acho que estamos nessa encruzilhada histórica, onde não temos muita segurança do que seria possível. Então surge o debate sobre reforma ou revolução. Eu acredito que há reformas que levam à revolução. As economias se tornaram tão interdependentes que uma proposta de revolução imediata poderia gerar catástrofes com muitas mortes. Então a questão seria avaliar que tipo de reformas teria um caráter revolucionário e levaria a outro sistema que abolisse a relação de classe, já que a essência do capitalismo é a relação entre capital e trabalho. Portanto, um projeto anticapitalista teria de erradicar a relação de classe. Há diversos movimentos pensando nessa direção como, por exemplo, as cooperativas de trabalhadores que recuperaram fábricas, mas alguns acabam reproduzindo um sistema de exploração capitalista, no qual os trabalhadores são seus próprios patrões. Portanto, não é suficiente pensarmos em termos de microeconomia, é necessário repensar a macroeconomia.     
Como o senhor vê o processo que descreveu como “acumulação por espoliação” na atualidade? Devemos analisá-lo como uma característica dos limites do capital ou como uma forma que o capitalismo encontra para, digamos, se reciclar?
Na medida em que o capital apresenta maior dificuldade para se sustentar, principalmente nos últimos 30 anos, aumenta a espoliação. Vemos hoje um enorme processo de expropriação e destruição de ativos e bens em várias partes do mundo, como no caso do mercado imobiliário, das poupanças e do roubo de direitos sociais, como no caso da saúde pública. Isso representa um enorme processo de acumulação por espoliação. Ao mesmo tempo, desde 2007, vemos uma enorme grilagem de terras por agentes particulares, empresas e governos em várias partes do mundo. A China, por exemplo, tem participado ativamente deste processo. Mas também vemos resistência política contra a espoliação. Estes movimentos de resistência podem se converter na base para uma transição anticapitalista. Além dos operários, todos os trabalhadores que produzem e reproduzem os centros urbanos e as organizações de luta pela terra podem se converter em um movimento massivo de construção de uma sociedade não-capitalista.   
Como o senhor analisa a possibilidade de uma nova guerra nesse momento de crise, dado o poderio bélico estadunidense armazenado?
Na verdade o que existe é uma guerra permanente em toda a história do capitalismo. Hoje os Estados Unidos estão envolvidos em duas guerras. Seria viável pensar em uma terceira frente de guerra? Eu não saberia responder. A questão é analisar qual o papel econômico da guerra, não apenas o aspecto geopolítico das guerras. Nos Estados Unidos há setores financeiros poderosos mesclados com a indústria bélica, que defendem a necessidade de desenvolver melhores tecnologias militares e com isso procuram justificar uma nova guerra. Por outro lado, seria possível resolver o problema da dívida nos Estados Unidos simplesmente cortando o orçamento militar, que representa o dobro de todos os gastos militares em nível mundial. Existem propostas nesse sentido, mas uma forma de evitar esses cortes seria iniciar outra guerra para justificar os gastos militares e, por isso, existe a possibilidade de uma ação contra o Irã. Ao invés de cortes nos gastos militares o que tem ocorrido são cortes nos programas sociais. Se analisarmos a relação entre a corrida armamentista e a dívida nos Estados Unidos, vemos que aumentou muito durante a Guerra Fria e o governo de Reagan, e seguiu aumentando nos governos de Bush. 

REPRODUZIDO DO JORNAL BRASIL DE FATO
13/03/2012


domingo, 11 de março de 2012

RÚSSIA E O IRÃ, O QUE ELES TÊM EM COMUM?

Aparentemente, nada. Mas uma breve análise geopolítica nos mostrará porque a mídia ocidental demoniza os dois personagens que estão à frente desses dois antigos grandes impérios, que exerceram fortes poderes regionais em períodos distintos da História: o russo (posteriormente União Soviética) e o persa.
Porque razão as repercussões sobre as eleições na Rússia e no Irã enfatizam o caráter corrompido do processo eleitoral nesses países? Como já disse em artigos anteriores aqui no Blog, é preciso criar na opinião pública mundial uma visão negativa desses países e de seus governantes, para que possa ser justificada qualquer medida mais beligerante que possa vir a ser tomada pelos países ocidentais. Isso faz parte de uma estratégia de guerra, mesmo que ela não ocorra. O que significa dizer que é importante que nesses países, seus dirigentes sejam sempre vistos de forma negativa, para que, assim, deixem de ser protagonistas na geopolítica de duas das regiões mais cobiçadas do mundo. Ou fragilizados o suficiente para serem eliminados ou destituídos de seus cargos.
Vamos falar sobre a Rússia. Imagens mostram revoltas do povo russo protestando contra fraudes no processo eleitoral. Mais uma vez. Isso foi feito também quando das eleições do Irã, embora poucos se lembrem. A mídia repercute opiniões de personalidades internacionais e dão vazão ás insatisfações de candidatos derrotados. Mas será que a eleição de Putin foi de fato um incômodo ao ocidente.
Logicamente que não. Basta ver os resultados. Não fosse Putin, o candidato em melhores condições de se eleger seria Guennadi Ziugnanov, do Partido Comunista Russo. O preferido dos EUA, por exemplo, ficou em quarto lugar. É evidente que o discurso de fraudes tem uma forte conotação política. A diferença foi muito grande, e todos os candidatos somados não obtiveram nem um quarto do total de eleitores (isso segundo a Comissão Eleitoral, no que é questionada pela oposição).
O que se pretende, com essa massificação da ideia de fraude eleitoral é, mais uma vez, da mesma forma que foi feito quando da eleição de Ahmadinejad, por um lado criar na opinião pública a imagem de que naquele país há um processo eleitoral corrupto, e, por consequência, fragilizar o presidente Vladimir Putin, tentando diminuir seu protagonismo na geopolítica mundial, principalmente na relação com os BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). Logicamente que a oposição nesses países aproveitam-se da situação, mas é a ela, em cada país, que deve ser dada a possibilidade não só de questionar, mas de convencer a população de seus países de eventuais irregularidades ou até mesmo desmoralizarem seus oponentes com o intuito de ocupar espaço. Afinal, o que está sempre em jogo é o poder.
Os questionamentos que se fazem sobre a Rússia, então e em decorrência disso, parte da tentativa de desmoralizar a democracia naquele país (e vamos ver que o mesmo se repete em relação ao Irã). É bom então esclarecer, para que não paire dúvida sobre a intenção dessa análise, que o sentido da democracia é relativo, e deve ser entendido historicamente. Nem se pode, também, a rigor, acreditar que a democracia capitalista seja a mais perfeita alternativa para a humanidade. Repito, não há a mesma busca por democracia em países como a Arábia Saudita, o Bahrein (onde existe base militar dos EUA), ou não se questiona o poder nuclear de Israel. Por outro lado se apoia golpes de Estados como o que ocorreu em Honduras em 2009.
A Rússia é um país que tem em sua história experiências vividas por poucos países do mundo. Possui uma dimensão territorial imensa e uma riqueza em seu subsolo que o coloca na posição de grande potência energética. É um dos maiores produtores de petróleo e gás do mundo. Sua situação geográfica é tida como estrategicamente favorável à dominação e expansão de seu poder. No começo do século XX, Halford Mackinder, um dos mais importantes teórico e estrategista da geopolítica mundial, britânico, elaborou uma teoria em que considerava aquela região do Cáucaso como o eixo central do mundo, que ele denominou como o “área pivot”, ou “Heartland”. Para ele, o controle dessa região deixaria vulnerável as potências marítimas e daria ao Estado que a controlasse a possibilidade de desenvolver um enorme poder terrestre. Quem domina essa região, disse Mackinder, dominará o mundo.
O período pós-soviético traz uma complexidade natural. É uma transição difícil reflexo de uma ruptura que girou a roda da história para trás, freando toda a empolgação que existiu ao longo do século XX na eminência de uma vitória do socialismo sobre o capitalismo. A desestruturação da União Soviética levou a uma necessária readequação de todo o funcionamento do Estado, fragilizado diante de uma crise que se estendeu por mais de uma década. A rapidez com que essas mudanças foram feitas, e diante da avidez das potências ocidentais em se aproveitarem do espólio aliando-se a todo o tipo de oportunistas e falsários que passaram a controlar esse poder decadente, terminou por levar ao poder um boneco de ventríloquo, chamado Bóris Yeltsin. Porquanto esteve à frente da Rússia sua imagem serviu para criar um sentimento de enorme frustração. Seria aquilo o resultado de uma revolução histórica?
Ferido, o povo russo, tradicionalmente nacionalista, buscou se apegar a um governo forte, que pudesse ser capaz de agir duro com o ocidente quando necessário. Assim se apresentou Vladimir Putin, ex-agente da KGB, que soube se aproveitar bem de toda essa fragilidade e do sentimento do povo russo.
À medida em que se acentua a crise na Europa e Estados Unidos as ações geopolíticas expressas em imagens, reportagens e nas declarações de personagens ligadas àqueles países, vão se tornando mais corriqueiras.
As eleições russas ocorreram num momento de confronto diplomático. A Rússia, juntamente com a China, bloqueara sanções contra a Síria, cujo objetivos eram semelhantes ao que acontecera na Líbia. Por se tratar de um país estrategicamente mais importante para a Rússia, essa sanção foi rejeitada, por não obter unanimidade.
Insatisfeitos, como já estavam com o comportamento arrogante de Vladimir Putin, intensificaram-se as manifestações contrárias ao resultado eleitoral. Evidente que uma análise mais criteriosa do comportamento do Putin, poderá dar até razão a muitos de seus críticos, mas o que está por trás de todo esse embate é a disputa geopolítica envolvendo países que possuem forte aparato bélico, e situam-se em regiões de enorme importância estratégica.
Portanto, as verdadeiras razões da insatisfação com o novo “czar” moderno russo, estão muito além do que se encenam nas reportagens da grande mídia. A Rússia, com Putin, volta á cena com forte protagonismo nas disputas regionais e mundiais, e se insere em um grupo que aos poucos vai se consolidando como atores principais na mudança de rumo que está tomando a geopolítica mundial.
Mas outro grande teórico da geopolítica, e conhecido estrategista estadunidense, reforçaria a teoria de Mackinder, mas parte dela para elaborar uma nova interpretação sobre a maneira de controlar o mundo. Para ele o poder mundial estaria nas mãos não de quem controlasse o “heartland”, o coração do mundo, mas sim, por quem pudesse cercá-lo.
Nicholas Spykman, geógrafo e geoestrategista foi o responsável, com sua teoria, pela política externa adotada pelos Estados Unidos, durante toda a guerra fria. Um dos pilares de sua teoria impunha a necessidade de os Estados Unidos estabelecerem alianças que pudesse manter a então União Soviética restrita à influência do Heartland. Dessa forma, toda a sua ação geopolítica se deu no sentido de exercer o controle sobre o Rimland. Ou seja, dominar as principais nações que situavam-se no entorno do “crescente interno”, que seria a área da Eurásia que circulava o Heartland.
O objetivo principal, além de em algum momento exercer o controle sobre o heartland, era estabelecer um cordão em volta da União Soviética, isolando-a e expandindo o domínio geopolítico para outras áreas, como as Américas. Com a queda do socialismo e o retorno da Rússia à cena geopolítica, acelerou-se toda uma política para se exercer o controle dos governos que surgiam dos novos Estados.
Mas, tanto da fase da disputa geopolítica no contexto da guerra fria, como nos anos que se seguiram ao fim da União Soviética, até os dias atuais, permaneceu sempre presente a intenção de controlar os Estados-nações que compunham o chamado Rimland. Inclui-se aí o norte da África, a Europa e o Oriente Médio. Essa região cresceu de importância, em função da enorme riqueza ali existente, mas prosseguiu sempre também os objetivos geopolíticos determinados por Spykman, para quem era imprescindível impedir que houvesse uma aliança entre Estados do heartland e os do Rimland. Por isso, as alianças que eventualmente acontecem entre a Rússia e países como a Síria e o Irã, ameaçam o domínio geopolítico dos EUA e colocam em xeque, pela teoria do Rimland, o seu poder hegemônico sobre o mundo.
Quanto ao Irã, embora sendo um país de características distintas da Rússia, a preocupação segue na mesma direção. Não somente por ser inimigo declarado de Israel, Estado parceiro e importante estrategicamente para os Estados Unidos no Oriente Médio, mas por vir a se constituir em uma grande potência regional. Plenamente consolidada se se confirmar a sua capacidade de deter tecnologia nuclear e com uma das maiores reservas petrolíferas do mundo.
O Irã, único país não-árabe do Oriente Médio, herdeiro de um dos maiores impérios da antiguidade, se diferencia culturalmente de todos os demais que foram sacudidos por revoltas populares. Algumas das quais instrumentalizadas pelas potências ocidentais, para não perderem o controle de áreas estratégicas, principalmente as produtoras de petróleo. Mas também daqueles países que possuem fronteiras que dão acesso a canais por onde se transportam toneladas de tonéis de petróleos e gás.
O regime iraniano é extremamente fechado, e escora-se em um Conselho de Aiatolás, que mina o poder do presidente. Sua constituição submete-se a um poder maior, o religioso, e pelo que está escrito no livro sagrado dos Muçulmanos, o Alcorão.
Em última instância, as decisões mais importantes são tomadas por esse conselho. Nesse imbróglio político o grupo de Armadinejahd não é o mais conservador. Mas suas decisões necessariamente precisam estar em consonância com o que pensam os Aiatolás. Mas, quando teço essas comparações, o faço à luz de uma realidade bem específica. Afinal, não é difícil ser mais progressista do que um clero islâmico, dominado por anciãos sectários, da corrente xiita. Evidentemente, isso não faz de Armadinejahd um revolucionário. Mas não é o demônio, como traduzido pelo Ocidente.
Com um poder militar que supera o de todos os demais países do Oriente Médio, e com uma capacidade bélica que só não faz frente à Israel pelo fato do país judeu possuir armas nucleares, só resta ao Irã se igualar nessa capacidade, a fim de poder se proteger de um eventual ataque israelense.
Protegido pela China e Rússia, com o veto à resolução do Conselho de Segurança impedindo uma invasão à Síria, o que possibilitaria um cerco e um ataque ao seu território, o Irã se apressa em criar as condições para se proteger com um escudo nuclear. E caso isso se concretize, não somente estará consolidando uma posição de hegemonia regional, como também incentivará outros países a se armarem com artefatos atômicos, condição de se verem livres de ameaças de potências indesejáveis. Poderá estimular uma nova corrida armamentista, nos moldes da guerra fria, agora num mundo multipolar, só possível de ser controlado mediante uma total renovação da Organização das Nações Unidas. Mesmo assim, com grandes limitações, na medida em que o poder hegemônico dos Estados Unidos será cada vez mais questionado.
O que não é possível admitir é a insistência em criar as condições favoráveis internacionalmente para atingir os governos de determinados países, mediante um insidioso noticiário, incensando-se o fragilizado sistema “democrático” ocidental, como se fosse a panaceia que salvará a humanidade de si mesma, e desconsiderando-se as culturas e realidades complexas de sociedades que carregam tradições milenares. Aliás, o sistema eleitoral dos Estados Unidos é extremamente viciado, e muito embora existam sempre dezenas de candidatos à presidência, para dar a impressão de liberdades democráticas, na prática a disputa fica restrita a dois partidos, que se revezam sem alterar substancialmente a política de Estado, já que é forte o poder das grandes corporações a lhe controlar.
Alguns anos atrás, quando se denunciou a fraude eleitoral que garantiu a reeleição de George W. Bush, a mídia não teve a mesma reação. E busca-se insistentemente, principalmente num quadro de crescimento de uma crise econômica brutal, quando esse sistema democrático serve aos interesses daqueles que controlam o capital, dar a demonstração de que os instrumentos do Estado capitalista são suficientes para conter a sua podridão. Escondendo o fato de que esses próprios instrumentos carregam o velho vício de atender aos interesses de uma minoria que controla a riqueza e o poder.
Os governos da Rússia e do Irã não são confiáveis do ponto de vista de quem anseia por mais liberdades e justiça social. No entanto, a construção de alternativas que possam substituí-los deve partir de seu próprio povo. Muito menos cabe à mídia campanhas mentirosas, atendendo-se aos interesses geopolíticos e geoconômicos em disputas. Como se viu no noticiário do dia 10.03, quando na sequência das notícias o Jornal Nacional da Rede Globo informou que “segundo” a oposição síria, dezenas de pessoas tinham sido mortas por tropas daquele governo. No entanto, quando fez referência às mortes no Iêmen, e ao combate daquele governo com os que desafiam o regime, afirmou serem terroristas. É, portanto, acintosa a parcialidade da informação, com o intuito de criar uma opinião pública que veja como normal a invasão de alguns países, e até o assassinato de seus dirigentes. E o oposto se faz quando é do interesse das potências ocidentais, principalmente dos EUA.
Do mesmo modo, durante noticiário da Band News, neste domingo (11/05), a repórter referiu-se a mais um massacre, a morte de quinze afegãos por um soldado estadunidense, como um “incidente”, seguindo-se os tradicionais pedidos de desculpas do embaixador dos EUA naquele país. Em seguida, ao noticiar um atentado com três mortos no Paquistão, o adjetivo utilizado foi que o “crime” havia sido praticado por um homem-bomba. Ora, são dois assassinatos, crimes hediondos, e deveriam ser noticiados com o mesmo grau de indignação.
Com esses posicionamentos, o que poderíamos prever, numa situação em que no nosso país em algum momento pudesse passar por situação semelhante? Seria admissível aceitar a ingerência de outro país, a armar uma oposição que porventura não consiga atingir seus objetivos pelos meios políticos? Como, aliás, esteve prestes a acontecer no golpe militar de 1964?
A autodeterminação dos povos é um dos elementos basilares da garantia da inviolabilidade de seus territórios. Não se pode, como vem sendo feito, adotar o discurso de defesa dos direitos humanos com o claro objetivo de se exercer o controle sobre Estados que detém em seus territórios enormes riquezas minerais, ou, que possuem fronteiras e localizações regionais que têm uma enorme importância estratégica.