domingo, 30 de novembro de 2014

QUANDO CHEGA DEZEMBRO

Há uma música, cantada por Geraldo Azevedo, feita em parceria com Fausto Nilo, que incluo entre as mais belas da MPB, e ela faz me lembrar de tempos agitados em meu período de militância política estudantil e das odisseias nas quais me envolvia, aos finais de semana, percorrendo bares onde amigos musicais cantavam. Essa era, seguramente, uma das músicas mais pedidas: Chorando e Cantando. “Quando Fevereiro chegar/ Saudade já não mata a gente/ A chama continua/ No ar/ O fogo vai deixar semente/ A gente ri a gente chora...”. Some-se a isso o fato de eu ter nascido no mês de fevereiro, e eu me deparava com a música que mexia comigo, sob vários aspectos. O tempo passou, e essa música permanece, mais ainda, a mexer com meus sentimentos, e acentua as minhas lembranças. Consequentemente a saudade de um tempo que, naturalmente, não volta mais. A não ser em nossa memória.
Desde há oito anos, quando perdi minha filha, num fatídico dia 13 de dezembro, muita coisa mudou. Por mais de três anos, a dor profunda gerou angústia, depressão, tristeza, um enorme vazio como se um pedaço de mim tivesse se separado – e foi –, me manteve anestesiado. A perda de uma filha gera uma dor que não tem cura. Carregamos para o resto da vida.
Foram dez anos que não se apagam, o tempo em que ela viveu, e se manifestam de formas diferentes em uma infinidade de lembranças. As músicas, os programas de TV, as fotografias, o quarto, a casa como um todo por onde a alegria, e a bagunça, sempre são marcas de crianças, tudo isso são situações, objetos e instantes que agem como flashes em nossa memória.
Nada, contudo se compara ao se aproximar do mês de dezembro. Daí a relação com a música de Fausto Nilo e Geraldo Azevedo. Parafraseio, inverto a letra, e aplico-a na realidade que vivemos todos os anos: “quando dezembro chegar, saudade já não mata a gente, a gente ri, a gente chora, a chama continua, no ar”.
Dezembro é um mês torturante para mim. Para nós, que perdemos Carol nessa data, mas, creio, para todos que passam por situação semelhante a nossa. Porque dezembro não é um mês comum, como fevereiro, embora tenha sido esse o mês que nasci, e que tem um simbolismo pessoal presente nele. Até porque nasci no dia em que meu pai fazia aniversário.
Mas o mês de dezembro carrega todo um simbolismo, reforçado por uma cultura consumista, mas cujos valores e tradição já vêm de outros séculos, ou milênios. O capitalismo potencializa isso, e mexe estressantemente com os desejos, criados pela necessidade do mercado em fazer explodir a explosão de consumo. Um frenesi toma conta das pessoas, liberando uma alegria naqueles que conseguem se enquadrar nessa lógica e fazer realizar seus desejos de gastança. Mas, por outro lado, gera um enorme desconforto, e causa depressão, quando esse sentimento é tolhido impossibilidade de gastar, ou, mesmo que movido por um sentimento honesto, compartilhar presentes entre as pessoas das quais se gostam.
Essa realidade presente nesse mês transformou-se em um imenso vazio. Dezembro não desaparece, seria impossível isso, mesmo se o desejássemos, mas ele tornou-se torturante em nossas vidas, e para mim ele não se faz, se desfaz. A cada dia que se aproxima da data em que minha filha morreu, sinto aumentar minha tristeza. O dia 13 deixou de existir por todos os anos que se seguem à sua morte. Ele sempre será aquele 13 de dezembro de 2007, quando de forma brutal pudemos observar pela última vez, materialmente, nossa pequena Carol. A sua última imagem, em vida, a qual não gostaria jamais de lembrar, e por muito tempo apaguei de minha memória, embora ela sempre volte à minha lembrança, foi em seus últimos momentos e suspiros, num leito da UTI do Hospital da Criança. A leucemia ceifara sua vida, sem que lhe fosse dado tempo para lutar e tentar reverter uma situação pela qual muitas crianças passam e conseguem superar. Mas, no caso dela, foi fulminante. E apagou para sempre o dia 13.
Eu já não me empolgava muito com as festividades deste mês, embora me envolvesse em comemorações com familiares e amigos. Depois da morte da Carol dezembro tornou-se um mês chato, insuportável, triste e depressivo. Nos três anos em que me vi tolhido por uma depressão, meu comportamento era sofrível, e me via acuado pelos cantos a chorar, revoltava-me com a vida e com a insuportável inversão de ter visto minha filha ser sepultada. Superei isso, me recuperei da depressão, mas não da tristeza que me invade o coração nessa época, mais do que nos demais meses do ano. Talvez mais próximo da tristeza que sinto no mês de março, quando ela nasceu.
O que mudou foi a forma de explicitar isso. Com o tempo, as lembranças vão ficando somente nossas, alguns parentes, amigos e amigas, que naturalmente vivem suas rotinas e realidades pessoais e familiares, já não compartilham como antes esses momentos tristes que sentimos. Isso torna mais silenciosa a nossa dor. Mas ela não é menor, apenas sabemos melhor controlá-la, por entender que nossa vida continua. Contudo, a tristeza, que não pode ser confundida com depressão, é um sentimento que carregamos sempre que perdemos alguém que amamos muito. Mas a dor de perder um filho ou uma filha é muito profunda, somente quem passa por um trauma desses tem a noção de tamanha dor. E isso é algo que não imaginamos para ninguém.
Por isso a contradição presente nesse mês torna-o muito amargo. Se não posso apagá-lo, não desejo sua proximidade, e desejaria que o tempo que o faz passar fosse mais acelerado do que para os demais. E se o dia 13 é tão somente uma repetição de um único, que não se apagará jamais de nossa memória, o dezembro e suas festas consumistas capitalistas, é torturante. Não há alegria para mim, por esses dias. Sinto-me mal quando circulo pelas ruas, repletas de correrias das pessoas ávidas por consumirem. Sou tomado por mais contradições, pois sinto ser um pouco egoísta na minha dor. É como se eu invejasse a alegria desses momentos que tomam conta delas.
Mas não é o que eu desejo. Cada um vive a sua vida, a sua maneira, com seus valores culturais, impulsionados pela religiosidade, ou pela lógica que o sistema capitalista impõe. E é preciso vivê-la, intensamente, malgrado as circunstâncias e a lógica que nos move. A minha dor não pode ser sentida por outros, não posso desejar isso, e não desejo. Apenas preciso desabafar. A proximidade com a data da morte de minha filha me angustia e me entristece. Conviver com isso, em meio a uma data que resplandece, por qualquer que seja a razão, alegria e outros sentimentos positivos, só faz aumentar esse dilema e tornar dezembro um mês insuportável.
Por isso digo sempre aos amigos, que o ano acaba para mim, sempre, quando começa dezembro. Desejo que ele se encerre o mais rápido possível, embora isso não resolva o problema das lembranças, das saudades, e da falta que sinto da Carol. Só é algo irrefreável em meus sentimentos. Por mais que em determinados momentos eu procure me cercar de amigos, e demonstrar alegrias, o recolhimento em minha casa, onde por todos os cantos suas lembranças estão presente, faz com que em me transporte para aquele mês de 2007, quando em seu começo os dias de minha filha foram se encurtando, até desaparecer definitivamente no dia 13.
Foi sozinho em minha casa em um domingo chuvoso e escuro, quando escrevi essas palavras,  e isso era o que me povoava a mente. Vejo em minha frente o retrato de minha filha, mas a reforma em minha casa impede que uma árvore de natal que ela ajudava a montar desde quando meu pai era vivo, até 2001, possa nos animar um pouco. Sempre seguimos a tradição de montar a velha árvore mesmo depois da morte dele, e jamais desejei substituí-la. E, em seguida, após a morte dela mantivemos o hábito. Procuro ainda algum canto para colocá-la. Porque, mais do que a mística que cerca esse objeto, e com todas as minhas objeções, para mim ela representa a alegria que minha filhinha sentia ao montá-la. Por isso ela esteve sempre enfeitando nossa casa, nesse mês que não mais acontece, mas existe, por quanto tempo for isso possível.
2ª Edição, lançada em 13/12/2014
Essa crônica, como tantas que escrevi ao longo desses anos, está incluída no livro que escrevi para minha filha e que reeditei e lancei no dia 13 de dezembro 2014, “Depois que você partiu”, durante o Bazar do Instituto Ana Carol. Neste ano de 2015, no dia 12, véspera de se falecimento, estaremos mais uma vez realizando esse evento, para o qual convidamos a todos(as). Como sempre, o Bazar do IAC será na Associação dos Moradores do Conjunto Caiçara, a partir das 9 horas da manhã, até às 17 horas.

Finalizo me lembrando de mais uma música:
“Oh, pedaço de mim/ Oh, metade adorada de mim/ Lava os olhos meus/ Que a saudade é o pior castigo/ E eu não quero levar comigo/ A mortalha do amor/ Adeus” (Chico Buarque, “Pedaço de mim”).



Ao final, acrescento um dos poucos vídeo que tenho gravado, de minha filha, em um momento descontraído ao lado de uma tia, também já falecida, na cidade de Salvador, no verão de 2006, em nossa última viagem antes de sua morte. É a primeira vez que compartilho esse vídeo. Por muito tempo, custava-me assisti-lo. E sempre lamentei não ter outros que pudesse me fazer aplacar a saudade que sentimos da pequena Carol.


* Esse artigo foi publicado no final de novembro de 2014. Reedito agora, em dezembro de 2015, com algumas pequenas atualizações.



quinta-feira, 27 de novembro de 2014

A CRISE DA ÁGUA EM SÃO PAULO

“Água pra encher/Água pra manchar
Água pra vazar a vida/Água pra reter
Água pra arrasar/Água na minha comida
Água/Aguaceiro/Aguadouro/
Água que limpa o couro/Ou até mata”.
(Água. Djavan)

O problema da água, no Brasil e no mundo não é recente. Já se vive uma situação alarmante há décadas, e isso vem sendo devidamente pesquisado e alertado em diversos fóruns de discussões, em universidades ou por organismos multilaterais, como a própria ONU, que no ano de 2006 publicou em seu Relatório Anual, um denso estudo sobre a  situação hídrica no mundo[1].
No entanto, por questões políticas decorrentes da realização de um processo eleitoral neste ano, exatamente em meio a pior crise hídrica do Estado de São Paulo, vimos desfilar pelos meios de comunicação, principalmente o maior deles, a Rede Globo, uma infinidade de reportagens manipuladoras, de tentativas grosseiras de desviar as responsabilidades sobre o mal gerenciamento desse recurso imprescindível em nossas vidas. Por uma razão óbvia, aliviar o governo daquele Estado, e garantir a reeleição do governador Geraldo Alkmin. O problema maior, além da enganação política, é prolongar um problema sério e de visível agravamento para a população, já que o governo, por essa razão, evitou alertá-la para o risco e deixou de adotar medidas para conter desperdícios.
No primeiro momento, durante o processo eleitoral o que se viu foi omissão, e até mesmo uma solene indiferença ao grave problema que afetava a população paulista. Passadas as eleições, gradativamente a situação foi sendo mostrada, sem o caráter impactante que caracteriza a forma como esses telejornais, e outros veículos de comunicação, tratam situações parecidas, mas referentes às responsabilidades do governo federal. De forma desavergonhada, e acintosamente, amenizaram a gravidade da crise hídrica, e, exatamente por isso, tentam tergiversar e desviar o foco da principal razão, a má gestão, e apresentam reportagens que, bem aos seus estilos, tratam de todas as causas que sabidamente tornam a questão hídrica grave, para, dessa forma, responsabilizar fenômenos naturais, ou aqueles mais gerais, ligados ao processo de desenvolvimento econômico com as indicações das responsabilidades humanas, sempre genéricas, mas nunca colocando em xeque o estilo de vida criado pelo sistema capitalista.
Ora, não é novidade que o alto grau de urbanização e a impermeabilização do solo, em cidades que crescem aceleradamente elevam a temperatura nas grandes metrópoles, isso eu estudei quando fazia o colegial; Tampouco é inquestionável que o desmatamento acelerado da Amazônia afeta o regime de chuvas, afetando a evapotranspiração, uma vez que a diminuição da vegetação nessa imensa floresta reduz na formação da umidade, refletindo no regime de chuvas. Pela dimensão da floresta Amazônica essa afetação se estende por diversas regiões brasileiras, podendo chegar até a influenciar nas precipitações hídricas no sul do país. Isso também tem sido objeto de estudos há décadas.
Mas quais as medidas efetivas foram tomadas pelos governos de São Paulo, durante a última década, diante da eminência de uma crise que era dada como certa, visto que esses problemas eram previsíveis? Tenho visto referências aos problemas gerenciais da água, eles estão sendo mostrados. Mas de uma forma a amenizar erros dos gestores paulistas, procurando identificar as causas em situações que, supõe-se, não seriam da responsabilidade daqueles que deveriam estar diuturnamente preocupados não somente com o que aconteceria no próximo dia, mas nas décadas seguintes.
É preciso separar os vários tipos de problemas. Mas eles têm também relação com a governança estadual. Como não? Devem-se fazer também reportagens sobre o quanto se desmatou no Estado de São Paulo em décadas anteriores. Se no começo desse século, reduziu o desmatamento nesse Estado, é porque praticamente já não há muito mais a ser desmatado. E registre-se o fato de que há uma semelhança entre o Nordeste de séculos passados e o São Paulo de hoje, a grande quantidade de hectares plantados com de cana-de-açúcar, cultivo que traz um grande prejuízo ao solo, como de resto todas as monoculturas, e por um uso intensivo de água em sua produção e transformação nas usinas.
Revista Pesquisa Fapesp
Ed. 171 maio 2010
http://revistapesquisa.fapesp.br/
Quando digo separar, não penso em ignorá-los. Mas deve-se dar a sua devida dimensão, local, regional e global. As responsabilidades despontam em todos os níveis. Mas o caso específico em discussão, caso grave de estresse hídrico que afeta aquele Estado, decorre da absoluta incompetência na gestão da água. Simplesmente porque o que se vê hoje, já tem sido alertado por especialistas, diante principalmente no acelerado crescimento urbano, bem como o aumento do índice de desenvolvimento nas regiões metropolitanas, fazendo com que o consumo de água crescesse a olhos vistos.
Em trabalho publicado em 2008, o professor da USP, Wagner Ribeiro alertava[2]:

As manchas urbanas exigem muita água para a produção do espaço urbano e para suprir as demais necessidades de seus habitantes. É cada vez mais caro prover água a poplação das grandes cidades e das metrópoles.
(...) São Paulo é um caso que merece atenção. Com cerca de 20 milhões de habitantes, situada em um sítio cujas altitudes oscilam entre 800 e 400m, necessita captar água de outras bacias hidrográficas para prover sua população. O fato mais grave é que a legislação de proteção aos mananciais, criada na década de 1970 e revista na de 1990, não conseguiu coibir a ocupação irregular nas áreas das nascentes. (pág. 35)

Ora, um trabalho de pesquisa que trata especificamente o problema da área, realizado por um estudioso de uma universidade paulista, a mais conceituada do país, não poderia jamais ser subestimado por gestores do Estado, que deveriam estar permanentemente atualizado sobre um problema visivelmente complexo pela sua importância e gravidade.
Mas não somente este estudo, como tantos outros, apresentados inclusive em um evento realizado na cidade de São Paulo, no Memorial da América Latina, em 2010, com a exposição de dezenas de trabalhos de pesquisa sobre as dificuldades hídricas no Brasil e no Mundo. Organizado por uma rede internacional, Waterlat, o Congresso teve como temática central a “tensão entre justiça ambiental e justiça social na gestão da água”, e aglutinou pesquisadores brasileiros e estrangeiros, gerando um ambiente propício para se identificar os principais problemas que cercam os recursos hídricos e apontando perspectivas críticas e soluções. Eu estive nesse congresso e pude também apresentar um trabalho de pesquisa que desenvolvo dentro da problemática da água, no âmbito da geopolítica, identificando as dificuldades da gestão transfronteiriça desse recurso, e, principalmente, o seu uso – e abuso – na agricultura. Especificamente enfocando o cerrado goiano, e a região de Cristalina, no entorno de Brasília, com a concentração da maior quantidade de pivôs centrais da América Latina. Essa região pode vir a atrair investimentos de uma São Paulo seca e desprovida desse imprescindível recurso, mas já se depara com os mesmos problemas.
Mas, onde estavam os gestores paulistas no momento da realização de um evento importante para as atividades que eles desenvolvem?
A série de reportagens da rede Globo, que me levou a escrever esse artigo, ao amenizar a responsabilidade dos gestores prolonga esse comportamento irresponsável, de menosprezar a necessidade de se encarar as soluções com rapidez, principalmente porque elas demandam tempo para gerar resultados. Ao mesmo tempo, completando o festival de desinformação sobre quais são as melhores medidas a serem adotadas, foram mostradas pesquisas da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), no campo da transgenia, com o enxerto em plantas de elementos que a tornam mais resistentes aos períodos secos, demandando pouca água para a sua sobrevivência. Mas isso não é solução para os problemas imediatos, não tem nenhuma relação com as alternativas que devem ser encontradas para solucionar o problema de mais de uma dezena de milhão de pessoas que estão em vias de conviver com a falta de água em uma das dez cidades mais populosas do mundo.
A desinformação, e a manipulação da informação, causa um sério complicador, na medida em que não possibilita que o processo educativo atue com precisão em meio à população. A omissão do Estado, decorrente da disputa eleitoral, em iniciar desde o primeiro semestre um cronograma de racionamento na cidade, possibilitou que o Sistema Cantareira, complexo de diversas barragens que abastece a maior parte da cidade de São Paulo, reduzisse drasticamente seu volume de águas. Indiferença das pessoas por um lado, já que a gravidade do problema foi reduzida por irresponsabilidade política, e cobrança acentuada por outro, na medida em que a água começa a faltar, principalmente em bairros mais elevados, como consequência da redução na pressão a fim de evitar mais desperdícios nas tubulações, torna a situação ainda mais tensa. Principalmente porque afeta os bairros de maior população, periféricos e de menor poder aquisitivo. No outro extremo, as empresas e grandes condomínios investem na alternativa dos poços artesianos, causando mais dois problemas sérios: a (in)justiça ambiental e a redução dos níveis dos lençóis freáticos.
Sobre isso, outro pesquisador, e doutor pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Carlos Walter Porto-Gonçalves, escreveu ainda em 2006[3]:

Hoje, com o motor a diesel se busca água no subsolo e, com isso, introduz-se no nosso léxico cotidiano novas expressões como aquíferos, já que as águas superficiais e mesmo os lençóis freáticos já não se mostram suficientes, pelo menos na hora e no lugar desejados. Cada vez é maior o saque aos aquíferos e, deste modo, introduz-se um componente novo na injustiça ambiental generalizada no mundo e em cada país com a expansão da racionalidade econômico-mercantil engendrada pelo capitalismo. Afinal, a captação de água à superfície era, de certa forma, mais democrática na medida em que a água estava ao alcance de todos, literal e materialmente. Com a captação de águas nos subterrâneos, os meios de produção, as bombas a diesel, se tornam sine qua non conditio, e como nem todos dispõem desses meios a injustiça ambiental ganha novos contornos por meio do desigual acesso aos recursos hídricos. (pág. 424)

Além desse aspecto social, o uso descontrolado das águas dos lençóis freáticos e aquíferos pode acentuar mais ainda o problema, com o rebaixamento desses depósitos de águas subterrâneas, fazendo com que a cada perfuração torne-se necessário aumentar a profundidade dos poços. A consequência disso aparecerá, na dialética precisa do processo que gera o ciclo das águas, na alteração também do regime de chuvas, uma vez que impactará nesse processo reduzindo o tempo para que ele se complete, e ampliando uma situação que de estresse hídrico pode passar para a de escassez total de águas para a região, e o Estado, de maior desenvolvimento econômico do país. São Paulo pode, assim, passar pelas mesmas dificuldades que a região do semiárido nordestino. De imediato, os reflexos econômicos são diversos, e tem sido pontuado em diversas reportagens, o que gera mais apreensões, tensões e tentativas de se resolver o problema de forma isolada.[4]
Por isso, como sugere essa reportagem citada, e outras, as soluções deveriam ser para ontem. E para que se acredite que as medidas a serem tomadas são sérias os gestores públicos precisam assumir os equívocos cometidos durante todos esses anos, para que se tenha a certeza de que os mesmos não se repetirão.
Mas porque não se pode culpar simplesmente os fenômenos apontados no início deste artigo? Embora saibamos que eles ocorrem, são consequências do estilo de vida urbano e provocam também problemas hídricos. Porque existem outros exemplos, em várias grandes cidades do mundo, que executaram de forma planejada transposição de águas de áreas que passaram a ser preservadas, ou onde existem o recurso em abundância. Só para citar alguns exemplos:
Para não começar somente com citações de feitos ocidentais, muito comum entre nós, apresento inicialmente um projeto de grande envergadura e que alguns devem ter considerado megalomaníaco, até por conhecer a personalidade do governante que o empreendeu, Muammar al-Gaddafi, ex- presidente líbio, assassinado durante as revoltas contra o seu governo, com o apoio de países ocidentais. “O Grande Rio Feito Pelo Homem”, como assim ficou denominado o projeto, executado, se estende pelo deserto desde a fronteira do Chade com a Líbia, em uma extensão de mais de 4.000 quilômetros, transportando mais de cinco milhões de m³ de água, numa das maiores obras de engenharia da África[5]. Além de abastecer as grandes cidades, principalmente Típoli, o objetivo era também impulsionar a produção agrícola, por meio de irrigação, tornando produtivas regiões áridas.
Mas as dificuldades de abastecimento hídrico, afeta também a maior potência econômica. Com um país de dimensões continentais e com regiões díspares em suas características ambientais, mas convivendo em todas elas com o crescimento urbano exponencial, os EUA também tem exemplos de grandes empreendimentos realizados há anos, em alguns Estados e/ou municípios, para suprir suas populações de água de qualidade.
Los Angeles é a segunda cidade mais populosa dos EUA, e, mesmo sendo do Estado mais rico do país, enfrentava situações por situar-se em uma região de dificuldades hídricas.
“Los Angeles se espalha por um platô semi-árido, um quadrado cercado por três desertos e o Oceano Pacífico e com um índice pluviométrico anual médio de parcos 380 mm -o do Pantanal, por exemplo, fica entre 1.000 mm e 1.400 mm.
Sua única fonte de água doce então era o esquálido rio Los Angeles, hoje um canal de concreto que também já foi cenário de muitos filmes (entre eles, a corrida de carros de "Grease - Nos Tempos da Brilhantina", de 1978, com John Travolta). No auge da exploração, calcularam as autoridades de então, sua água serviria até a 250 mil pessoas, não mais. Até que alguém teve a idéia. "E se usássemos a água de sobra do vale Owens?" A 350 km dali, 6.000 metros acima do nível do mar, serpenteava um rio ao largo de uma série de cidadezinhas e desembocava no lago homônimo”[6].

Uma obra monumental foi posta em funcionamento, mobilizando milhares de operários e mais de um bilhão de dólares, no começo do século XX, construindo enormes aquedutos que transportam água até hoje por mais de 300 quilômetros de distância para abastecer uma população de mais de 20 milhões de pessoas. O custo foi impressionante e o tempo gasto bem maior do que se prevê para a finalização da transposição do Rio São Francisco. Mas se constituiu em uma obra imprescindível para garantir que Los Angeles e o seu entorno pudessem dispor de água de qualidade até os dias de hoje.
Maior cidade dos EUA, e a segunda maior do mundo, Nova Iorque também se deparava com problemas semelhantes, embora não em uma região tão seca quanto Los Angeles. Em uma parceria estratégica e inédita, entre fazendeiros, pequenos proprietários de terras e o município, o governo estabeleceu uma parceria que possibilitou o controle de uma reserva situada a mais de 200 quilômetros da cidade, repleta de nascentes e reservatórios. Protegendo as matas ciliares ao longo dos cursos d’água e criando medidas protetivas, foi garantida a conservação do recurso que passou a ser transportado por enormes aquedutos e túneis que começaram a ser construídos desde o final do século XIX, sendo que o último deles tem previsão de conclusão para o ano de 2020, embora com algumas fases já em funcionamento.
Recentemente, quando se teve início a construção da transposição do Rio São Francisco, com o intuito de garantir abastecimento a diversas cidades do semiárido nordestino, por vários estados, cujos rios há muito tempo deixaram de ser perenes, setores oposicionistas criticaram a medida, e ainda o fazem, sob alegação dos altos custos envolvidos, ou de outros cujas críticas são de fortes conteúdos ideológicos, e imaginam que os resultados só beneficiarão ricos fazendeiros. Diga-se de passagem, serem esses alguns dos argumentos usados no começo do século para os que se opunham à transposição de águas do Vale de Owens na Califórnia, para Los Angeles[7].
Mas o Estado mais rico do país, há mais de 20 anos governado pelo PSDB, cuja postura é de se vangloriar pela eficiência administrativa, e apresenta sempre a competência paulista como referencia para o resto do país, passou todos esses anos, mais de duas décadas de governo, não somente investindo pouco em obras de impacto que pudessem apontar para um planejamento futuro de garantia de poucos riscos de abastecimento de água, como sendo inoperante na adoção de medidas protetivas para os mananciais que abastecem os sistemas, principalmente o maior deles, o Cantareira, como também os seus reservatórios. Por seus entornos, margens desprotegidas, abertas a explorações de diversas atividades turísticas, empresariais e de atividades pesqueiras, expõem a fragilidade e irresponsabilidade com a gestão de um recurso que já se sabia não ser suficiente para garantia de abastecimento de uma população urbana de crescimento acelerado e desordenado. Não foram poucos os alertas para o colapso que se avizinhava.
Disputa por água em carro pipa
Nova Delhi - Índia
É evidente que os problemas decorrentes da falta de água, em São Paulo e em outras partes do mundo, são de dimensões múltiplas, não sendo somente de gestão. Elas decorrem, além de fatores naturais gerados pela própria dinâmica da terra, como se aceleram em função do comportamento adotado pelo ser humano, por um estilo de vida urbano e predador dos recursos naturais a uma celeridade maior do que suas capacidades de reposição. Além das consequências causadas pelas atividades que geram aquecimento, reduz a vegetação, destroem as veredas fazendo secar nascentes, causam assoreamento nas margens dos rios e impactam no regime de chuvas. Mas tudo isso não se constitui em segredo, ou em algo que está acontecendo somente neste ano. São situações que já se estendem por várias décadas, conforme explicitei no começo deste artigo. Isso é o que torna mais grave a inoperância e incompetência dos gestores públicos, fazendo com que a cobrança principal se dê exatamente contra a incapacidade de se gerenciar um recurso de tamanha importância para a vida humana e a natureza de maneira geral.
https://www.youtube.com/watch?v=x-OIVfi-JX8
O que se espera, é que essa crise, não alimente (e não seja alimentada) a especulação já em voga em boa parte do mundo, pela ação das multinacionais da água, que dominam os mercados em diversos países. Conforme é comum no capitalismo, a escassez de um produto é o que o torna valioso. Por essa razão o investimento na captação de águas feitas por empresas privadas, e o comércio desse recurso que já se torna mercadoria quando a adquirimos engarrafada, tem se tornado tão comum, e atraído os interesses dessas grandes corporações.

As multinacionais estão, cada vez mais, privatizando e consolidando os sistemas de abastecimento de água. Na última década, pelo menos três – Suez, Veolia Environmental Services (ex-Vivendi) e Thames Water – expandiram-se, transformando-se em empresas de comercialização de água em todo o mundo em desenvolvimento. No início de 2009, a gigante industrial alemã Siemens pagou quase US$1 bilhão pela U.S. Filter, maior fornecedor de produtos e serviços para tratamento de água da América do norte. Multinacionais gigantescas, como  General Eletric e Dow Chemical, também estão entrando no ramo de água, ao lado de outras empresas das quais você já deve ter ouvido falar, como Nalco, ITT e Danaher Corporation.[8] (Pág. 76-77)

Por mais absurdo que pareça a idéia, ela me povoa a mente. Espero estar equivocado, e esta não seja uma crise provocada, em uma atitude de risco calculado, visando implementar formas privadas da gestão da água na capital e no Estado de São Paulo. Considerando que Sabesp, (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo) que gerencia essa atividade já é uma empresa de economia mista e de capital aberto, com ações comercializadas em bolsas de valores, não é de se espantar, dado a própria característica do governo paulista, se essas medidas vierem a ser tomadas. Por enquanto as atenções se dirigem para a capacidade dessa empresa conseguir solucionar um problema de gerenciamento que até agora ela foi incapaz de resolver. Os gestores privados, especuladores, acionistas, estão de olho no desenrolar dessa crise. O que eles desejam, é lucrar com ela. O que interessa à população é solucionar os problemas, garantir abastecimento de água sem racionamento em suas casas, mas deve, sempre, lutar para que jamais a água se torne uma mercadoria a saciar a ganancia de usurários capitalistas.



[2] COSTA, Wagner Costa Ribeiro. Geografia Política da Água. São Paulo: Anablume, 2008.
[3] PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. A globalização da natureza e a natureza da globalização. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
[5] Great Man Made River Project Libya, Libyen.
[6] Sem Transposição de Águas Los Angeles Não Existiria. http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc1710200512.htm
[8] SMITH, Laurence C. O Mundo em 2050. Rio de Janeiro: Elsevier-Campus, 2011.