terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

CRÔNICA DE UM MUNDO EM TRANSE – CAPITALISMO, UM SISTEMA FINITO (PRÓLOGO)

Em janeiro de 2012 escrevi uma série de artigos para este blog, que intitulei “Crônica de um Mundo em Transe”[i]. Foram seis artigos, ou cinco partes e um final. Mas não houve um fechamento definitivo, até porque a última parte, em que analisei uma nova etapa da guerra travada pelo Império, denominada “guerra ao terror”, com a substituição de tropas por um serviço de inteligência, espionagem, mais efetivo e sofisticado tecnologicamente, posto em prática com a introdução de uma novidade surgida da indústria da guerra e que predomina atualmente em diversas áreas por todas as partes do mundo: o uso dos drones. A partir dos anos seguintes, esse aparato tornou-se mais sofisticado e os assassinatos “cirúrgicos”, de enormes efeitos colaterais, dizimaram um número indefinido de vítimas, “terroristas” ou não. Isso me fez insistir na análise de como as ações desenvolvidas intensivamente para destruir e desestabilizar os inimigos do império por todo o mundo, onde isso fosse possível, tornaria a humanidade mais vulnerável e espalharia ódio e intolerância de forma indiscriminada. De lá para cá o mundo mudou, e para pior. E, ao invés de reduzir as guerras, ampliou-as e deu poder aos grupos sectários, disseminando mais ainda ações terroristas, que não ficaram restritas ao Oriente Médio e África, mas que atingiu duramente a Europa e até mesmo os EUA, apesar de todo aparato repressivo e de vigilância.
A crise econômica mundial se intensificou, tornou-se cada vez mais crônica, porque é de origem estrutural, e disseminou uma onda de perversidade gerada pela necessidade das classes dominantes retomar o curso dos acontecimentos, de forma a reestruturar o capitalismo e tentar tirá-lo de uma das piores crises de sua história. Tudo isso alimentou uma reação conservadora, potencializada pelas redes sociais, onde cada um individualmente, se sentindo uma voz “libertadora” em meio a uma multidão virtual, descarrega sua opinião apolítica, anti-política, políticamente incorreta, e absolutamente estúpida. São minhas impressões, feitas a partir de análises geopolíticas, mas sustentadas por uma ótica que me coloca em contraposição com os mecanismos criados pelas forças que dominam os mercados, as corporações, e as políticas que definem os rumos loucos de um mundo em transe.
Minhas análises decorrem de leituras acuidadas, de concordâncias com diversas opiniões[ii] manifestadas em blogs, revistas, livros e em documentários produzidos nos últimos anos, e muitos premiados, que retratam com bastante fidelidade o desequilíbrio na política mundial, provocado por uma estratégia que se dissemina há décadas, desde o começo da guerra fria, mas que nos últimos anos atingiu o limite da estupidez. Como já disse em outros escritos neste blog, apesar de toda a loucura existente por trás das ações geopolíticas dos EUA e seus aliados, houve uma nítida intencionalidade em cada uma delas, no sentido de desestabilizar dezenas de países, por meio de provocações de insurgências internas com o consequente esfacelamento de seus governos. Em alguns casos, a guerra civil foi fomentada quando alguns governos resistiram às pressões populares, insufladas por movimentos organizados financiados por ONGs e alguns grupos que surgiam seguindo-se uma estratégia de deslocar o protagonismo dos partidos e tornar a política desmoralizada. Sem a capacidade política de estabelecer acordos, a regra que se segue é a guerra. E isso se dá de diversas maneiras, desde o enfrentamento bélico, gerador de destruição acelerada, como aconteceu na Síria; ou por meio da disseminação entre a população da desesperança, da descrença e da propagação do ódio e intolerância, tornando o país ingovernável, nos dois casos.
O desequilíbrio que atinge o mundo, decorre de uma crise que teve seu ápice entre os anos de 2008 e 2010, mas que não pôde ser solucionada até hoje, gerando uma onda de insatisfação por todo o mundo e possibilitando que discursos ultranacionalistas antiglobalizantes apresentem como alternativas personagens anti-políticos, ou de comportamentos populistas e fascistas. A derrota da política dissemina-se para além das fronteiras e desconhece os poderios econômicos dos países por onde ela se espalha.
A partir de 2010 uma série de revoltas, fomentadas propositadamente afetaram diversos países, mas também ocorreram como decorrência da forma com que a crise econômica afetou cada um deles. Havia um clima de insurgência latente que potencializou essas ações. O aumento de desemprego, que afeta primordialmente as camadas mais jovens, na medida em que se fecham as possibilidades de acesso ao mercado de trabalho por aqueles que estão se habilitando, mas que não detém experiência para serem aproveitados numa realidade em que muitos devidamente especializados estão sendo dispensados de seus empregos. Seguramente essa foi uma das razões que levou a uma explosão de manifestações por países do norte da África e estendeu-se por todo o Oriente Médio. Mas a espontaneidade foi apenas no início dessas revoltas, a partir do momento em que se disseminaram entraram em cena outros atores, com objetivos bem definidos, desestabilizar governos situados estrategicamente, ou por seus governos serem reticente às políticas do Império e de seus aliados.
Na América Latina, que nas duas últimas décadas tinha dado uma guinada à esquerda, com a escolha pela população de governos progressistas que se dirigiam para uma outra direção, distanciando-se dos EUA e aproximando-se da China e da Rússia afetando o espectro geopolítico regional, esse desequilíbrio não ocorreu como consequência da crise econômica, embora ela fosse latente. Mas pelas disputas do poder local, estimuladas pelos interesses dos EUA em retomar sua influência nesses países. A estratégia, nesses casos, foi fomentar a desestabilização por meio de uma forte influência na política, fortalecendo os partidos conservadores e segmentos religiosos neopentecostais; potencializando movimentos ditos independentes, que cumpriram o papel de desmoralizar a política; e, por meio de espionagem cibernética a identificação dos vícios historicamente consolidados no controle do poder. Assim, neste último caso disseminou no Brasil, em especial, uma espetacular investigação, iniciada, segundo Edward Snowden, pela vigilância na maior estatal brasileira, além dos principais personagens da política, blindando aqueles que sempre estiveram alinhados ideologicamente com os interesses estratégicos estadunidenses.
Mas a Europa não ficou imune a todas essas mudanças. Ela foi afetada não somente pela crise econômica que diretamente influenciou cada um dos países do bloco europeu, mesmo que de forma distinta no começo, mas que no último ano se ampliou voltando novamente a atingir o sistema financeiro, estremecendo o poderio dos principais bancos, principalmente na Itália e na Alemanha. Ao mesmo tempo, os efeitos colaterais das guerras travadas naqueles países que foram desestabilizados pela estratégia citada anteriormente levaram a uma das maiores migrações da história, com o deslocamento de centenas de milhares de pessoas oriundas principalmente daqueles países onde os governos foram derrubados ou estavam em vias de serem, causando uma falência quase total nos Estados.
Para completar as vicissitudes de futuros imprevisíveis, o “brexit”, com a saída da Grã-Bretanha da União Européia, numa decisão inesperada da população, tanto quanto a eleição de Donald Trump nos EUA. Inesperada, ma non troppo! São posições que refletem uma insatisfação com os rumos em que a economia e a política andam tomando, em cada um desses países, em particular, e no mundo, de uma maneira geral. O que se espera ainda, para os próximos meses, é uma guinada ainda mais à direita, com as eleições que virão, que já sentem a repercussão da derrota do establishment estadunidense, que apostara tudo na candidatura da Hilary Clinton, inclusive praticamente toda a grande mídia daquele país.
Ao mesmo tempo em que o mundo estremece, com crises incontroláveis por todos os lados, e deixa os estados-nação sem alternativa para conter as insatisfações geradas por essas situações, ampliam-se sentimentos de intolerância, de xenofobia, de comportamentos fascistas e neo-nazistas, inclusive o fortalecimento de partidos que defendem esses posicionamentos. As redes sociais disseminam muito mais rapidamente essas atitudes agressivas e reforçam na sociedade um sentimento de aversão ao outro que age, pensa e se comporta de maneira diferente dos padrões conservadores e/ou religiosos.
Tudo que ocorre são consequências nefastas da falência de um processo de globalização que prometeu uma coisa, mas que o resultado foi bem diferente. O deslumbramento com a rapidez com que se davam os negócios e os deslocamentos de mercadorias pelo mundo, escondia o essencial; o fim das fronteiras só fez ampliar a concentração da riqueza. Nesse período, que corresponde a cerca de trinta anos, desde as últimas décadas do século passado, e das primeiras deste século, o sistema despertou sua face cruel, e a ganância se apresentou como o verdadeiro motor que movimenta o capitalismo, tendo a usura como coadjuvante. Nunca, em toda a história da humanidade, indivíduos se esforçaram tão intensamente para tornar-se cada vez mais ricos, sem que houvesse um limite para atingir. Ao mesmo tempo, disseminou-se como uma cultura entre as pessoas comuns, estimuladas por dogmas criados a partir desses valores, de que o enriquecimento seria uma dádiva possível a todos, desde que fossem fiéis aos princípios do sistema, impulsionados por sofismas que desvirtuavam crenças religiosas milenares.
Naturalmente, uma tentativa de reestruturação do sistema, como se pretendeu com a globalização neoliberal, necessitaria de vir acompanhada por verdades ditas insofismáveis. O convencimento deveria ser um elemento fundamental, e crucial, a fim de consolidar entre as pessoas a fé inabalável na existência de um único caminho para a humanidade: o capitalismo. E a condição de se tornar vitorioso, ou vitoriosa, seria incorporar esse espírito, despertar os desejos inerentes à lógica capitalista e inebriar-se no consumismo desenfreado. Entramos numa era de ilusões vãs, e em lugar dos sonhos bucólicos a humanidade optou pela distopia, transformando a sociedade num ambiente opressivo, onde a necessidade de competir, e de se destacar em meio à intensa disputa pelo sucesso, nos legou a depressão como a doença do século, e, como consequência, uma era de intolerância, violência, racismo e estupidez se disseminaram aceleradamente pelo mundo, e destacadamente no Brasil, potencializado pela disputa política e pelo lamaçal de corrupção que desvendou uma parte de como funciona as relações de poder na falida democracia. Mas talvez democracia não seja mais o nome adequado para identificar o regime que norteia e conduz a política no capitalismo. Melhor seria considerar que vivemos em uma plutocracia. Ou numa cleptocracia. Qual será o fim dessa história? Porque haverá um fim, isso é certo, embora não possamos dizer em que momento preciso. Afinal, até mesmo o capitalismo é um sistema finito. Como todos os outros.



[ii] ANDERSON, Perry. A Política externa norte-americana e seus teóricos. São Paulo: Boitempo, 2015
BANDEIRA, Luis Alberto. A Segunda Guerra Fria. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013
 __________________. A Desordem Mundial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016
ESCOBAR, Pepe. Império do Caos. Rio de Janeiro: Revan, 2016
HARVEY, David. 17 Contradições e o fim do capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2016

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