domingo, 12 de novembro de 2017

ENQUANTO A CHUVA CAI A ÁGUA SE ESVAI - ESCASSEZ E ESTRESSE HÍDRICO

Enfim, a chuva chegou! E como no velho niilismo nietzschiano nos vemos preso a um fim que não se acaba e estará de volta em um eterno retorno de um discurso que retomará seu recomeço no próximo período de estiagem.
É impressionante como recorrentemente o problema hídrico é tratado somente no limite da necessidade. Há um provérbio popular que sintetiza bem isso: “Só percebemos o valor da água depois que a fonte seca”. Naturalmente, o interesse da grande mídia comercial está na criação de um sentimento de perplexidade, e da geração de temores e medos que compõem o universo dos jornais e telejornais sensacionalistas, em sua maioria. Às vezes até aparecem boas reportagens sobre o assunto. Mas pecam pela superficialidade, e pela insistência em tratar o problema da falta de água como decorrente dos gastos abusivos, ou excessivos, por consumidores urbanos.
Podem acontecer abusos, e certamente acontecem, no uso da água nas cidades. Mas longe está desta ser a principal razão da grave crise hídrica que ameaça não somente a economia, mas como nossas próprias vidas, humanos, animais ou plantas. O mesmo pode-se dizer da forma como aparece na abordagem dos problemas climáticos, insistentemente focado no discurso do aquecimento global com um viés voltado para o interesse da reestruturação capitalista e favorecimento das grandes corporações. Desvia-se do eixo central, das questões que são, de fato, as responsáveis pela forma com a falta de água se tornará, provavelmente tendo seu auge em 2050, no pior problema da humanidade para o século XXI.
A literatura acadêmica, focada em pesquisas sobre esse tema, tem apontado há mais de uma década, não somente os diagnósticos que indicam as causas da crise hídrica seja escassez ou estresse, como também indicam as necessárias medidas para amenizar esse problema. Mas, tanto o diagnóstico, quanto as medidas a serem tomadas, esbarram na forma perversa como funciona o sistema capitalista, ou decorrente da escolha de um estilo de vida altamente urbanizado, exageradamente marcado pelo consumismo, mas, principalmente devido ao fato de todos citadinos necessitarem adquirir os alimentos necessários à sua sobrevivência. Ao contrário de sistemas anteriores, por séculos e milênios passados, em nossa época os bilhões de pessoas que vivem nas cidades não produzem seus próprios alimentos. Essa equação, aliada à lógica gananciosa e usurária que marca a vida contemporânea, dificulta a tomada de decisões que são essenciais para conter essa crise.
Com algumas indagações, que o levam a iniciar a discussão sobre o problema da escassez de água, Laurence Smith é um daqueles que veem na falta de água uma ameaça para o futuro da humanidade. Em sua obra “O mundo em 2050”, ele dedica boa parte a essa discussão.
O que nos reserva o futuro? Nossa água está acabando, a exemplo do que acontecerá com o petróleo? Nos últimos 50 anos, dobramos nossas terras cultivadas irrigadas e triplicamos o consumo de água para atender à demanda global de alimentos. Nos próximos 50 anos, teremos de dobrar mais uma vez a produção de alimentos. Será que haverá água para tudo isso?i
Apesar de, diferentemente do petróleo, retornar à superfície por meio de um ciclo hidrológico que a renova permanentemente, a celeridade com que se dá o consumo esgota rapidamente a água superficial, ou mesmo os lençóis freáticos, o que levará inevitavelmente à escassez, ou ao estresse hídrico.
Mas há uma cegueira ideológica na identificação dos problemas, ou melhor, das causas que são geradoras de um consumo elevado e com intenso desperdício desse recurso. Como questiona Smith, até onde será possível ir a nossa capacidade de produzir alimentos para abastecer cidades com milhões, ou dezenas de milhões de habitantes? Mas não somente alimentos. Tudo o que se produz depende da água, na indústria, na construção, nos usos diversificados urbanos. 
Em um dos artigos que produzi aqui neste blog, e que tinha também a água como referência, abordei esse tema diante da grave situação que passa o bioma cerrado.ii Desta feita, embora ainda procurando reforçar esse problema, por ser este o bioma que concentra uma enorme quantidade de nascentes que formam as principais bacias brasileiras, vou dar mais amplitude ao tema. Embora não seja a primeira vez que faço isso. O fiz também quando a cidade de São Paulo correu um sério risco de desabastecimento, em decorrência da diminuição do volume de água do sistema Cantareira, conjunto de barragens que abastecem aquela cidade, por meio de dois outros textos.iii De lá para cá, o problema tem se agravado, muito embora no caso específico do Estado de São Paulo, o governo tenha iniciado um conjunto de obras visando a transposição do rio Paraíba do Sul. Só que são soluções que não atingem o problema da redução dos níveis de água, e gerarão outros efeitos colaterais. No caso deste rio a situação já está crítica em alguns pontos, de diminuição do volume de águas, em função da destruição de suas margensiv e da poluição que tem afetado a reprodução de diversas espécies de peixes, alguns já à beira da extinção.v
É correto agir para evitar desabastecimentos nas grandes cidades, em todas as aglomerações urbanas, obviamente, até porque constitucionalmente a prioridade do uso da água deve ser para atender as necessidades humanas. Mas a gestão que os governos aplicam quando a questão é a água, se limita somente a isso. E não de forma preventiva, com algumas exceções, mas as medidas são tomadas quase sempre quando o problema atinge o seu ponto crucial, de estresse ou de escassez hídrica.
É bom que se diga, antes de qualquer aprofundamento nas razões dessa crise, que o estresse hídrico ocorre quando há água, mesmo que em quantidade elevada, mas é insuficiente para atender a demanda, tanto do uso urbano, quanto na indústria e agropecuária.
Pode-se definir o estresse hídrico como resultado da relação entre o total de água utilizado anualmente e a diferença entre a pluviosidade e a evaporação (a água renovada) que ocorre em uma unidade territorial, em geral, definida por um país.vi
Já a escassez decorre pela absoluta falta de água numa determinada região, que pode vir a ocorrer também como consequência dos usos abusivos e da consequente diminuição do volume de água. Ou seja, o estresse hídrico pode vir a se transformar, futuramente, numa escassez crônica.
A escassez hídrica é uma das medidas de avaliação geográfica de uma unidade territorial. Ela pode ser física e econômica. Quando a quantidade disponível de água de um país não é suficiente para prover as necessidades de sua população, existe uma escassez física de água. Se um país não tem recursos financeiros para levar água de qualidade e em quantidade suficiente à sua população, apesar de ela ocorrer em seu território, a escassez é econômica.(idem)
Objetivamente pode-se encontrar resposta para as dificuldades de diversas regiões do mundo em ter acesso à água potável, seguindo-se o processo produtivo, os mecanismos que levam à produção industrial, à criação de gado e, principalmente à agricultura, com uso intensivo de irrigação, completamente fora de controle. Neste último caso, embora a irrigação seja um elemento essencial para garantir produção de alimentos suficiente para alimentar a população, a preços acessíveis, a ausência de fiscalização sobre os métodos adotados, muitos deles feitos de forma clandestina, tem sido um fator de destruição de importantes rios. Aqui no Brasil isso é nítido, é sabido, mas não é fiscalizado como deveria. E quando há fiscalização e multas os punidos não pagam, em função do poder exercido pelos grandes produtores rurais, absenteístas em sua maioria, latifundiários e que são responsáveis por produção em larga escala de monocultura.
Canal ilegal desvia água para irrigação
 - Rio Araguaia - G1
Recentemente no Estado de Goiás, como consequência de uma forte seca provocada por uma prolongada estiagem, e que teve como efeito colateral o esvaziamento de rios importantes para o abastecimento (veremos mais adiante que a seca é consequência, não causa), levou a intensificação da fiscalização em diversas bacias, como as bacias dos rios Meia Ponte e Araguaia, a fim de garantir o direito da água à população urbana, mas esse é um problema antigo, sem que haja punição aos que desviam água sem licença, ou quando a tem extrapola o limite do que lhe é permitido.
O que se vê, de forma impune, embora sob investigação do Ministério Público, é uma série de irregularidades praticadas por grandes produtores rurais, com desvios de águas do rio Araguaia por meio de extensos canais.vii No entanto isso já ocorre há tempos, e mesmo na reportagem citada isso é dito como se fosse natural, pois há abertura de processos, a indicação de multas, mas esse setor consegue por meio de forte articulação política, concentrada numa bancada poderosa no Congresso Nacional, se livrar de qualquer punição. E seguem cometendo irregularidades no uso da água. Não são poucos os que assim o fazemviii, e, embora essas últimas ações estejam concentradas no Rio Araguaia, elas se estendem por todo o Estado de Goiás e por diversos outros estados brasileiros, levando destruição a rios importantes da hidrografia brasileira, e ressecando pequenos córregos e riachos também por meio de outras ações destrutivas.
Captação irregular de água
 do rio Meia Ponte - GO
Poderíamos listar aqui diversos outros casos de irregularidades na captação de água para irrigação, bem como o desperdício gerado pelo uso de velhos pivôs centrais. Na região de Cristalina, muito embora haja em algumas propriedades técnicas mais sofisticadas, com uso de tecnologias modernas que controlam a emissão de água e até mesmo o horário em que isso ocorre, elas compõem uma minoria. Soma-se a esses fatores a disputa entre irrigantes e investidores de Pequenas Centrais Elétricas (PCHs), bem como de obras mais suntuosas para geração de energias, barragens que prejudicam o curso normal das águas do rio São Marcos e de outros, e afetam também espécies da fauna fluvial, em alguns casos de forma irreversível.
Mas a discussão em torno do problema da escassez de água, bem como da seca gerada pela irregularidade além do natural, do ciclo das chuvas, se dá, a meu ver, de forma enviesada. Nada, no entanto, que não siga um roteiro pré-elaborado por quem controla setores que tem interesses na criação de uma opinião consensual, no caso mais em conta o “aquecimento global”, a fim de proceder a transformações na matriz energética e prosseguir na reestruturação do capitalismo.
As mudanças climáticas estão a ocorrer, naturalmente. E não há dúvida que a ação humana contribui para acentuar desequilíbrios e potencializar transformações que, pelo tempo, demorariam mais a ocorrer, ou não se dariam com a intensidade com que acontece. Portanto, as alterações climáticas são fato, acontecem, e a ação humana tem reflexo nisso.
Contudo, a dimensão que se dá ação humana tem mais a ver com questões da geopolítica do que com a climatologia, por exemplo. Mas seja por aí, ou pela física, oceanografia, geografia, ecologia, biologia… etc… etc… etc... Explico.
Pivôs ilegais captam água
do rio araguaia
É importante considerar que as duas questões estão ligadas. As discussões em torno da crise hídrica, bem como a que envolve as mudanças climáticas.
A insistência em centrar no consumo urbano o problema da água, ou de considerar que o aquecimento global se deve principalmente a efeitos colaterais da industrialização, esconde a essência do problema, as reais causas que estão deteriorando nossa qualidade de vida no Planeta Terra. O interesse em desviar o foco, ou em construir versões sobre as causas, tem o objetivo de amenizar as responsabilidades sobre a maneira como o sistema capitalista esgota nossos recursos, destrói a natureza e impacta perversamente no clima, principalmente nas regiões com altos índices de urbanização, como decorrência de um estilo de vida que implica em consumir além daquilo que o planeta pode oferecer para produzir mercadorias.
As interferências das atividades humanas no ciclo hidrológico ocorrem em todos os continentes e em muitos países. Os impactos dessa intervenção no ciclo variam para cada região ou continente. De modo geral esses impactos são:
a) construção de reservatórios para aumentar as reservas de água e impedir o escoamento;
b) uso excessivo de águas subterrâneas;
c) importação de água e transposição de águas entre bacias hidrográficas.ix
Complexo de represas em fazend
a na cidade de Inhumas
 - águas do meia ponte - O Popular
O que aponta Tundisi é o resultado desastroso de ações que são feitas sem a devida adoção de mecanismos protetivos, bem como ausência de planejamento para garantir que um bem imprescindível não corra o risco de se acabar. A gestão dos recursos hídricos somente acontece na contracorrente das necessidades. Ou seja, não estabelece a priori políticas que antevejam os riscos da escassez hídrica. As medidas somente são tomadas quando se está no limite da utilização da água, mormente em períodos de estiagem.
Inevitavelmente, esse descontrole afetará o ciclo hidrológico, que por sua vez implicará em desequilíbrios climáticos e oscilação acentuada de temperaturas. Na situação atual, de aquecimento sucessivo em algumas regiões, mas o efeito não é global, já que ele ocorre de forma diferente porque a própria distribuição da água é desigual no planeta e cria desequilíbrios naturais.
O fato é que há uma relação dialética entre a crise hídrica, as constantes mudanças climáticas, em um tempo mais acelerado que o normal e o intenso desenvolvimento capitalista. No entanto, é necessário ter a compreensão exata de quais são os elementos nesse processo que são responsáveis por esse desequilíbrio.
Mesmo que não houvesse mudança climática, o mundo continuaria enfrentando o declínio no abastecimento de água per capita por causa do desenvolvimento econômico e do crescimento da população. Mesmo que pudéssemos congelar o crescimento populacional, a modernização significa maior consumo de carne, bens acabados e energia; tudo isso eleva o consumo de água per capita. Contrariando a crença popular, o crescimento populacional e a industrialização representam ao suprimento de água global um desafio ainda maior do que a mudança climática.x
Ou seja, é exatamente as condições criadas por um modo de produção acentuadamente predatório, na medida em que constitui um estilo de vida consumista baseado no crescimento econômico concentrador, reprodutor de mercadorias em larga escala, bem como em uma urbanização acelerada, e que leva a necessidade de suprir populações concentradas aos milhões em centros urbanos, que torna difícil a solução dos problemas.
Desvio de água - Rio Descoberto
- You tube
Mas, tem sido mais difícil identificar essas soluções porque o foco dos possíveis motivos geradores desses desequilíbrios se concentram nas consequências, e não nas causas. E a forma como a grande mídia comercial trata esses problemas gera mais dificuldades na identificação das causas reais. Por um lado espetaculariza a informação e por outro não responsabiliza como deve os principais agentes causadores das condições que aceleram destruição de ecossistemas e biomas.xi
Volto a insistência como se trata do fenômeno que se tornou midiático, o “aquecimento global”. Ele (o discurso, e/ou a preocupação) surge por efeito da crise econômica e do deslocamento do centro produtor de mercadorias, e naturalmente, concentrador do dinheiro, dos Estados Unidos e Europa para a Ásia. Ao mesmo tempo, o crescimento de outras economias regionais, de menor porte, que foram colocadas na condição de, agora, serem responsáveis pela intensificação da emissão de gases gerados pelo forte desenvolvimento industrial e pelo uso de matrizes que potencialmente impactariam nos efeitos climáticos, gerando um aumento da temperatura em todo o globo.
Portanto, todo o discurso que há por trás dessa questão envolve elementos de geopolítica, e ao mesmo tempo, o que é cruel a meu ver, encobre as razões naturais tanto dos desequilíbrios climáticos regionais como da escassez e estresses hídricas. Porque visivelmente abrange interesses estratégicos, tanto econômicos como na disputa por recursos naturais.
Trocando em miúdos. O problema que se acentua gravemente no Brasil, mas que afeta também outras partes do mundo por diversos continentes, a deficiência hídrica, é causada por essa forma de desenvolvimento que destrói a natureza. E as medidas, ou repercussões dessa crise, só aparecem nos períodos em que ocorre ausências de precipitações pluviométricas.
Vou ficar no exemplo do Bioma Cerrado. Esse que já foi considerado por Guimarães Rosa como “a caixa d’água do Brasil”. E que de fato pode ser assim chamado, por ser por meio de suas nascentes, córregos e rios, que se formam algumas das principais bacias brasileiras. Mas, que sabemos, o problema não se resume a um único bioma, afeta os demais de forma diferente, pela especificidade em suas características geomorfológicas.
Ocorre que nos últimos anos houve uma intensificação acelerada da produção agrícola e criação de gado, impactando fortemente nesse Bioma. A redução do mesmo decorre da exploração predatória, baseada na grande produção de monocultura em propriedades latifundiárias que usam fartamente, por meio de grandes pivôs centrais, a irrigação como forma de aumentar suas produtividades. E o Estado é o financiador dessa situação, muito embora não o faça na mesma proporção, em termos de importância na cadeia de produção alimentar, com os pequenos produtores e com a agricultura familiar (que recebeu uma certa atenção na primeira década do século XX, mas que vê isso retroceder diante da crise que afetou o país e que levou à deposição da presidenta legitimamente eleita).
Mas além de citarmos a irrigação, é preciso identificar um problema anterior. O desmatamento, que destrói aceleradamente o Cerrado e leva ao fim, além de uma rica biodiversidade, as veredas, principais fontes de água, por cujas nascentes formam-se córregos e rios. Tanto o desmatamento, como o pisoteio do gado, são fatores destrutivos que vão reduzindo a capacidade de recarga e consequentemente tornarão córregos e rios de perenes a intermitentes. Registre-se que o Centro-Oeste é o maior produtor de gado bovino do Brasil, e somando-se com a região Norte, concentram mais da metade dessa produção. Justamente as regiões que atualmente mais são afetadas pelo desmatamento.xii
UHE_batalha - rio são marcos go-mg
É óbvio que a consequência disso será a diminuição do volume de águas que verterá para os principais rios que formam grandes bacias. Aliado a isso, as intervenções que são feitas para construção de barragens, seja para Pequenas Centrais Elétricas, ou para Grandes Centrais Elétricas, causam fortes impactos também sobre a fauna fluvial e gradativamente reduzindo o tamanho e a importância daquele rio. A destruição de suas margens, ou matas ciliares, consequência do desmatamento, da extração descontrolada de areia e em muitos casos devido a garimpos clandestinos, são outros fatores que transformam a paisagem por todo o percurso de montante à jusante e vão reduzindo o volume desses rios até que em alguns casos eles cheguem à sua foz na condição de um pequeno riacho.
Essas ações predatórias são as principais razões pela redução da capacidade hídrica de uma determinada região. E isso tem acontecido numa escala criminosa no Bioma Cerrado, a ponto de, pela primeira vez a capital federal, construída bem no coração desse bioma, passar pela primeira grande crise de escassez, levando a necessidade de rodízio na distribuição a fim de evitar uma situação mais drástica de absoluta falta de água para toda a capital federal.
Nascente do córrego Santa Clara
- Araguaína TO Assentamento Gurgueia
- Desvio de água por fazendeiro
Mas embora seja óbvio para os que estudam os problemas hídricos, inclusive da gestão, onde estão as origens dos problemas, os lobbies organizados que reforçam o poder dos grandes proprietários de terras, representados por uma forte bancada de parlamentares no Congresso Nacional, pressionam os governos para que isentem as dívidas daqueles produtores flagrados em ilicitudes na exploração da água. E, sob o argumento de que a produção de alimentos é uma necessidade para alimentação de uma população crescente, reivindicam mais investimentos para ampliar a área irrigada, sob o pretexto de que há ainda no Brasil um enorme potencial hídrico a ser explorado. O que pesa, na verdade, para além dos rumos que pode ir nossa capacidade hídrica, é a ganância e os lucros que são gerados para manter a opulência de uns poucos, que estão sempre protegidos desses infortúnios, já que a escassez de água afeta principalmente a população mais pobre.
Infelizmente, os governos dos Estados que compõem o bioma Cerrado, cometem desatinos quando desviam recursos que deveriam ser investidos na prevenção dessas irregularidades e punição de criminosos que não só destroem mananciais e fontes por onde nascem o líquido essencial à vida. Além de acobertarem, juntamente com uma justiça venal e uma incompetente Agência Nacional de Águas, as recorrentes irregularidades praticadas por grandes produtores, em muitos casos uma casta da qual eles próprios fazem parte. Banalisam a importância de cuidar bem dos recursos hídricos e estupidamente se escoram na ilusão de que a água é infinita.
Outro aspecto, de certa forma também de difícil solução, haja vista a incompetência dos gestores na administração pública, cujo foco é sempre a eleição seguinte, é a absoluta ausência de um planejamento adequado que identifique quais setores são estratégicos para a manutenção e fortalecimento do espaço vital seja nacional, ou regional. E no caso das grandes cidades, principalmente as capitais, as condições de crescimento levaram a uma absoluta inoperância na preocupação com o abastecimento de água na mesma proporção e aceleração com que se dava o crescimento populacional. Enquanto isso, nascentes eram aterradas, córregos transformavam-se em canais e a quase totalidade dos que cortam as zonas urbanas foram transformados em depósitos de descargas de dejetos de casas e indústrias, constituindo-se em verdadeiros esgotos a céu abertos. As águas que por ali circulam em tempos de grandes pluviosidades perdem-se na podridão e não são aproveitadas para consumo. Em tempos de estiagem o que prevalece são os líquidos que saem dos esgotos.
Esgoto no meia ponte
(Domício Gomes - O Popular)
No entorno das cidades, os cinturões verdes, de produção de hortifrutícolas, disputam boa parte dessa água e a usam para irrigação. Até aí se pode dizer ser um uso tolerado, na medida em que são produtores que abastecem as feiras e centrais que distribuem frutas e verduras essenciais em nossa alimentação. O problema é que não há fiscalização adequada, nem se busca usar de novas tecnologias para amenizar os gastos de água. Invariavelmente o poder público prefere grandes financiamentos para empreendimentos de produção para exportação, menosprezando a importância do pequeno produtor. Que de outra forma não consegue adequar seu sistema de irrigação às necessidades de controle do consumo de um recurso em absoluta escassez. Sem contar que alguns usam águas poluídas e produzem alimentos contaminados geradores de doenças para a população.
Mas, dessa forma, e sem o devido planejamento, a água que cruza as cidades são impróprias para o uso, e as que as circundam, ou mesmo que estão prestes a serem captadas pelos sistemas de abastecimentos, vão tendo o volume reduzido pelo uso que se faz dela para irrigação a montante. Só que essa é uma situação absolutamente previsível. Assim como é a previsibilidade de que após o período chuvoso, já que a água que escorre por esses mananciais torna-se imprópria para consumo e perde-se rapidamente nas vias impermeabilizadas, um novo período de estiagem, sempre com maior intensidade, virá para preocupar e gerar pânico e revolta entre as pessoas.
Rio Meia Ponte - Goiânia - O Popular
A alternativa encontrada por muitos, os que tem condições para isso, naturalmente, inclusive condomínios horizontais e empresas, é recorrer às empresas que instalam poços artesianos. Ora, como a cidade cresce acentuadamente, e se espalha por uma periferia cada vez mais distante do centro, o abastecimento de água demora a atender a essa crescente demanda. A retirada de água dos lençóis subterrâneos assume assim a condição de prover inúmeras residências do abastecimento necessário, obviamente. O que resulta disso? O aumento da retirada de água desses canais subterrâneos faz com que os mesmos se esgotem gradativamente, reduzam o volume dessas águas e forçando a que cada vez mais seja necessário aprofundar os poços para atingi-los. Ao mesmo tempo, isso vai afetar o processo de recarga de água e será também gerador do esgotamento de inúmeras nascentes, cujas águas desaparecem como decorrência da diminuição da quantidade que existem nesses lençóis e aquíferos.
E, para voltar a um tema espinhoso, que continuará por muito tempo gerando polêmica e repercussão, o “aquecimento global”, suponhamos que os céticos estejam errados, e, de fato se possa considerar essa expressão para se referir às transformações climáticas que acontecem no mundo. Não será, contudo, repito, por causa dos efeitos gerados pela industrialização, e consequentemente pela atual matriz energética, que esses desequilíbrios ocorrem. Mas pela destruição acelerada da natureza, pelo desmatamento em larga escala e a consequente destruição de nascentes, córregos, riachos e rios.xiii O maior perigo do mundo, inegavelmente, está na possibilidade de uma escassez geral da água, por não haver nenhuma alternativa para a humanidade com o fim de um líquido que é vital para a vida.
Canal clandestino de desvio de água
Não me parece que tudo que aqui escrevi seja novidade. Como já disse, eu mesmo já publiquei alguns artigos neste blog alertando para os problemas que advirão devido à incapacidade de lidar com o controle do uso da água. Acontece que, e aí termino da forma como comecei, sempre que a situação chega num ponto crônico em função do aumento do período de estiagem, soa o alarme, a mídia se alvoroça e confunde na explicação, cria um pânico que é natural, já que a falta de água é a pior coisa que existe para a vida. Aí temos alguns momentos de preocupação, e vemos as autoridades se debaterem com uma situação que não poderá ser resolvida no auge de uma escassez real.
O que estou a propor, portanto, é que devemos urgentemente encontrar o eixo correto para identificar as causas que estão nos levando por um caminho que pode tornar-se difícil de recompor o que se está a destruir. Claro que ainda é possível corrigir esses rumos, a ciência ajuda, com certeza. Mas é na gestão, no planejamento estatal e fiscalização severa, que devem se concentrar as principais correções.
Mas, de repente, vem a chuva! É como o soar dos sinos, alertando para um novo tempo. População, meios de comunicação (com exceções) e autoridades se quedam aliviados. Eis que a preocupação passa a ser a quantidade e a força com que cai a água, e as atenções agora voltam-se para aquelas populações, as mesmas vítimas principais da estiagem ou da seca, que vivem em áreas de riscos e correm o perigo de serem arrastadas por enchentes causadas pelas péssimas condições da arquitetura das cidades. E boa parte desta água, como visto, não poderá ser aproveitada.
Enquanto a chuva cai, a água se esvai.
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NOTAS:
i SMITH, Laurence C. O Mundo em 2050: Como a demografia, a demanda de recursos naturais, a globalização, a mudança climática e a tecnologia moldarão o futuro. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011. Pág. 71.
iv http://ranoticias.com/2017/10/29/o-paraiba-agoniza-pois-e-sangrado-em-varios-pontos-ate-chegar-onde-deveria-repousar/
vi RIBEIRO, Wagner Costa. Geografia Política da Água. São Paulo: Annablume Editora, 2008. Pág. 62.
vii https://g1.globo.com/goias/noticia/mpf-e-mp-entram-com-acao-para-proibir-que-fazendeiro-retire-agua-do-rio-araguaia-para-agricultura.ghtml
ix TUNDISI, José Galizia. Água no Século XXI: Enfrentando a escassez. São Carlos: RiMa, IIE, 2003. Pág. 14-15.
x SMITH, Laurence C. Op. Cit. Pág. 74
xi O que é um Ecossistema e um Bioma. Dicionário Ambiental. ((o))eco, Rio de Janeiro, jul. 2014. Disponível em: . Acesso em: XX (dia) xxx. (mês) XXXX (ano).

xiii https://g1.globo.com/to/tocantins/noticia/nascente-de-corrego-seca-apos-desmatamento-e-povoado-fica-sem-agua.ghtml

Um comentário:

  1. Gostei do artigo. E na sociedade de consumo, individualista, onde o lucro comanda, não vejo saída. O que fazer? Apontar caminhos, mais do que denuncias/constatar, já dizia o velho Illich, é uma ação revolucionária.

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