segunda-feira, 21 de maio de 2018

GEOPOLÍTICA DO CERRADO: NATUREZA, POLÍTICA E ECONOMIA


GEOPOLÍTICA DO CERRADO - Participei da Reunião Regional da SBPC na úttima sexta-feira pela manhã. Uma boa discussão para analisar um complexo e contraditório problema: “Cerrado: Ciência, Inovação, Crescimento Econômico, Desenvolvimento Sustentável e Sociedade”. O evento, muito bem organizado, ocorreu no Instituto Federal Goiano, Campus de Rio Verde. Minha conferência teve como tema> GEOPOLÍTICA DO CERRADO: NATUREZA, POLÍTICA E ECONOMIA. Creio ter deixado mais dúvidas do que certezas. Mas é como estamos convivendo com essa contradição de nos depararmos com regiões próspera economicamente, com uma grande concentração de riqueza e com um desenvolvimento econômico em cidades pujantes cercadas por áreas produtivas onde antes era o Cerrado. Sem o equilíbrio ecológico, dependendo de fortes pulverizações de venenos para eliminar as pragas cujos predadores foram extintos, escasseando a água, mas dando a dimensão de uma realidade fugidia, que não se sustenta ambientalmente e pode trazer profundas complicações para as gerações futuras. A academia está desafiada a contribuir com os rumos dessa história. Abaixo segue um resumo do que apresentei em minha exposição. (Romualdo Pessoa)

Nos últimos anos o mundo se deparou com um desafio, muito além das preocupações malthusianas, mas que nos força a relembrar das teorias de Thomas Malthus.  A análise que indicava a impossibilidade da humanidade poder garantir produção de alimentos para uma população que crescia vertiginosamente, praticamente perde força quando passamos a conviver com a capacidade tecnológica que o mundo alcançou ao final do século XX, inclusive na possibilidade de produzir alimentos nas situações mais adversas. Técnicas de lidar com o solo, inovações tecnológicas que aceleram o ritmo do plantio e da colheita, insumos que aumentam a capacidade produtiva, e o crescimento da indústria química utilizada no combate às pragas (para o bem ou para o mal, veremos mais adiante), colocaram por terra boa parte das questões postas por Malthus.
Mas, por outro lado, há uma lógica que impede essa capacidade tecnológica de vir suprir a contento a necessidade que existe em quase todos os continentes, mas principalmente África e Ásia, de reduzir o número de indivíduos que vivem na mais absoluta miséria e com boa parte deles, principalmente crianças, morrendo de desnutrição. Não tem acesso aos alimentos básicos que possam garantir suas sobrevivências.
Essa lógica é a maneira como o capitalismo transforma toda essa capacidade tecnológica em potencial produtivo visando exclusivamente a ampliação dos lucros. Assim, existe sim, uma enorme potencialidade decorrente de todas as inovações que revolucionaram incessantemente os meios de produção, mas toda essa capacidade termina servindo aos interesses mais gananciosos de acumulação e concentração de rendas.
Produzir alimentos, principalmente as chamadas commodities, mercadorias que tem os seus preços fixados no mercado internacional tem atraído muitos investidores. Traduzindo em miúdos, são mercadorias, principalmente minerais e produtos agrícolas, com pouca ou nenhuma industrialização, consequentemente com baixíssima agregação de valor, permanentemente monitoradas pelas bolsas de valores.
Esses produtos agrícolas têm seus preços fixados em dólares em nível internacional, com uma produção de larga escala, como característica principal o fato de serem produzidos em grandes propriedades e quase sempre monoculturas. Seus preços são, portanto, variáveis não somente em função da cotação do dólar, moeda padrão de referência internacional, mas também porque termina também sendo submetidas às oscilações das bolsas de valores, e, consequentemente, estão sujeitas às manipulações tradicionais que ocorrem no mercado financeiro. O Brasil tem se destacado nesse setor, tornando-se a partir deste ano no maior produtor de Soja, superando os EUA. A soja, assim, soma-se ao café, suco de laranja, açúcar e carne bovina. ii
Obviamente, esses mecanismos que movem o sistema capitalista global, não possuem a menor preocupação em transformar toda a capacidade tecnológica em investimentos para conter o aumento da fome em várias partes do mundo, notadamente naquelas citadas. Em alguns lugares, como na região da Somália e todo o seu entorno, a situação aproxima-se de uma enorme catástrofe, com milhões de pessoas deslocando-se para outras regiões e boa parte delas sucumbindo à fome e perdendo suas vidas nesses trajetos.
Portanto, o interesse é meramente especulativo, com base na ganância e na garantia de lucros crescentes, como de resto é a maneira como o sistema funciona. Isso significa dizer que os investimentos possíveis de serem feitos obedecem à lógica do mercado mundial, e, portanto, a crise econômica pode alterar os rumos do capital.
Mas é sempre bom considerar que o mercado de alimentos é potencialmente lucrativo, ou, melhor dizendo, das commodities agrícolas, já não mais somente como produtos que visem atender apenas às necessidades alimentares da população, mas também porque boa parte deles passa a se constituir em matéria-prima para produção de energia, como no caso da cana-de-açúcar (embora o etanol não seja ainda uma commoditie, o açúcar o é), o milho e outros que podem passar também a serem produzidos com esse objetivo. Além de boa parte da produção de soja atender ao mercado de ração para alimentar o gado que em boa parte do mundo, principalmente Europa é criado em confinamento.
A crise econômica, que persiste na maior parte dos países, tende a ampliar a crise alimentar em algumas partes do mundo, mas a tendência deve se manter, de os investimentos continuarem sendo feitos naqueles produtos marcados como commodities porque são os que garantem mais divisas para os países como o Brasil e possibilitam maiores lucros a quem investe no mercado de produtos agrícolas. Mesmo que isso signifique uma crescente concentração de rendas, por serem produtos de baixo valor agregado. Para o Estado Brasileiro o que mais importa é o fato de essa atividade ser a principal responsável pelo superávit na balança comercial.
Como esse é um espaço com enorme potencial produtivo e com ainda uma área cultivável imensa a ser explorada, se for desconsiderado, como tem sido, a importância da biodiversidade, provavelmente poucas alterações acontecerão em relação ao crescente interesse pela aquisição de terras em áreas desse bioma, como também na Amazônia e na região de transição entre o Cerrado e a Caatinga. Essa nova fronteira agrícola já atende pelo nome de MATOPIBA (Maranhão, Tocantins, Piauí, e Bahia), que tende a se acelerar quando a ferrovia Norte-Sul entrar em funcionamento.
A delineação desse quadro, já em curso, tem levado à aquisição de grandes quantidades de terras por empresas, e até mesmo governos estrangeiros, e passa a se constituir em um excelente investimento, principalmente em regiões de expansão agrícola como o Cerrado.iii
Consequentemente os impactos que decorrerão de tudo isso tende a ampliar o processo de degradação ambiental e de aceleração da devastação desse bioma. Por mais que as pesquisas desenvolvidas nas Universidades ou ONGs sérias focadas na enorme contradição presente da expressão “desenvolvimento sustentável com preservação ambiental”, possa indicar todo o rico potencial da biodiversidade do Cerrado, a resposta para investimentos e o quantitativo de lucro que advirá em atividades exploradas pelas populações tradicionais, não são suficientes para se contrapor a essa lógica gananciosa e destrutiva. Especulação, grilagem de terras e violência, tendem a aumentar, seguindo uma lógica perversa que afeta há décadas a população da Amazônia.
Cabe a todos aqueles que vivem no Cerrado e os que estudam sua riqueza natural e importância da sua biodiversidade, insistir em apontar os riscos que isso causa e a possibilidade de futuramente boa parte do bioma se tornar improdutiva e desertificada. O uso excessivo da água para irrigação, por exemplo, com a utilização de grandes pivôs centrais, a esgotarem rios, córregos e lençóis freáticos, é um bom exemplo dos desatinos que se cometem sem levar em conta os desgastes inevitáveis desses excessos, como por exemplo, a salinização do solo.
Acrescente-se a isso os interesses que estão por trás desse modelo de produção agrícola. Refiro-me agora às essas disputas exercidas por corporações gananciosas, e criminosas, que inundam o campo com produtos químicos responsáveis pela ampliação dos casos de câncer no Brasil e no mundo. São os agrotóxicos, venenos que eliminam pragas, mas que trazem junto um efeito perverso e profundamente destrutivo para as pessoas e todo o meio ambiente.iv Agora, que os representantes latifundiários tomaram o Congresso de assalto, já se discute a mudança da legislação para facilitar a comercialização desses venenos.v
Essas corporações, quase todas multinacionais, usam de todos os tipos de praticas deliquentes para burlar legislações e buscar apoio em setores políticos conservadores com o intuito de conter proibições – como ocorre em outros países – mesmo para certos produtos claramente comprovados como extremamente nocivos à vida humana. Calcula-se que cada brasileiro, em média, por ano consuma em torno de 5,2 litros de agrotóxicos, embora existam estudos que apontem para uma maior quantidade. vi
E essas Corporações atuam não somente na área de alimentos, como é de suas características, mas em outros setores geradores de disputas internacionais e guerras como o petróleo, indústria farmacêutica e de produtos veterinários. São gigantes que possuem fortes influências em poderosos Estados, principalmente os de suas origens, como os Estados Unidos, Inglaterra, França, Alemanha etc. Muitas delas tem seus produtos também fabricados aqui no Brasil, como Basf, Bayer, Syngenta, DuPont e Monsanto.
Como defender o Cerrado em um tempo em que todos os olhares gananciosos e geopolíticos estão voltados para esses imensos chapadões de uma paisagem que dá uma impressão de pobreza, mas que esconde uma enorme riqueza? Se todas as transformações que são visíveis nos Estados centrais, ou do imenso sertão brasileiro, se deram às custas de grandes investimentos agrícolas, e com isso possibilitou um forte crescimento econômico, como frear nos dias de hoje a continuidade de um processo que se agigantou e ameaça a riqueza natural de um importante bioma?
Esse é um desafio que se apresenta para todos aqueles que são estudiosos do Cerrado, mas que compreendem também todo o processo de desenvolvimento socioeconômico de uma região até pouco tempo marginalizada. Um progresso também, notadamente conseguido à custa de uma enorme concentração de riqueza, como decorrência do modelo agrícola utilizado, que causou outros efeitos colaterais. Um deles, a expulsão de quase toda uma população rural para as cidades, potencializando um crescimento desordenado das mesmas e um cinturão de miséria em suas periferias responsáveis em grande parte pelo aumento da criminalidade e do consumo de drogas que destrói o futuro de boa parte da sua juventude e mantém as pessoas refém da violência e do medo.
Assim, são as condições criadas pela acelerada penetração em direção ao heartland brasileiro, desde a marcha para o Oeste na época varguista, até a instalação da capital federal, seccionando o território goiano, e todo o projeto de integração nacional visando o controle estratégico da grande Amazônia posto em prática por Juscelino Kubitscheck no final da década de 1950 e consolidada pelos governos da ditadura militar.
Mas foi mesmo a revolução tecnológica na agricultura o principal responsável pela transformação acelerada de um solo seco em terreno de ótimo potencial produtivo. Aliado à característica climática sem muitas alterações, dividida em duas estações, a seca e a chuvosa, propícia à atividade agrícola e à pecuária.
Desfazer essa visão do cerrado como meramente um território somente adequado à instalação do grande agronegócio, e buscar outros caminhos alternativos de desenvolvimento, que se preocupe com a conservação da biodiversidade e de outros modelos sustentáveis de produção agrícola, é a tarefa do momento da universidade, dos pesquisadores e de todos aqueles que lutam pela exploração democrática e não destrutiva das riquezas que a natureza possui, em benefício da maioria e em prol da construção de um mundo com outra compreensão a respeito da vida.

i Romualdo Pessoa Campos Filho. Professor do Instituto de Estudos Socioambientais da UFG, Historiador, Doutor em Geografia, especialista em Geopolítica Contemporânea, Geopolítica da Biodiversidade, Geopolítica das Águas. Esse texto é um resumo, atualizado, de alguns artigos já publicados aqui no Blog.


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